“Praça” era a
designação do local onde, aos Domingos, depois do almoço e envergando os seus
fatos e vestidos domingueiros, separadamente se juntavam os homens e as mulheres
em busca de patrão para a semana seguinte, pois que para contratarem o pessoal
de que necessitassem lá estariam igualmente os capatazes ou os patrões cuja
riqueza não dava para meter capataz, que era o caso do patrão-seareiro. Mais
adiante veremos o que chamo eu de patrão-seareiro, para o diferenciar do
patrão-lavrador.
Em três locais diferentes e por esta ordem conheci eu a “praça”:
no cruzamento da Rua de Santo António com a estrada que vai para a Azinhaga;
junto à taverna das Motas, que confinava com o recinto da igreja; e no adro da
igreja. Era um tempo em que raramente passava um veículo puxado por animais ou
um ciclista, e mais raramente ainda um veículo motorizado. E, por isso, o
pessoal ocupava a estrada.
Do primeiro local (Santo António) mal me lembro, e não me recordo
onde é que as raparigas se concentravam, mas existia ali um sítio bom para
isso: era o pequeno pátio em frente da casa para onde, depois de casado, foi
morar o Veríssimo Duarte. No segundo, concentravam-se para lá do gradeamento
que delimitava o recinto da igreja e junto à porta de trás do Registo Civil. No
terceiro, junto à porta da frente do Registo Civil e à porta lateral da igreja,
tirando partido, para se sentarem, do longo poial que ali se situa.
Confinando com qualquer desses locais, não faltavam as tavernas.
No primeiro, duas, cada uma na sua esquina e de cujos donos não me lembro os
nomes. A da esquina do lado da Azinhaga era dos sogros do Manuel da Carlotina,
negociante de cavalos e que também ali vivia, com a mulher e as duas filhas. A
da outra esquina (que, se a memória me não atraiçoa, era dum avô do Manuel
Gameiro, conhecido por “o Menino”, que foi para a CP e casou com a filha única
do António Santana, também ferroviário) foi deitada abaixo, em Janeiro ou Fevereiro
de 1941, pela força da corrente das águas da cheia que, com a ultrapassagem e
derrube de uma parte do Dique dos Vinte, no campo da Golegã, enfiaram pela
estrada que, ligando a Azinhaga e o Pombalinho, ficava a um nível inferior ao
dos terrenos limítrofes, quase na sua totalidade constituídos por olivais.
Essa foi a maior cheia registada no Pombalinho até então (1941), e
além da casa (loja e habitação, como era de norma) derrubada pela força da
corrente que lhe batia em cheio, ruíram com essa cheia mais umas seis ou sete
moradias, devido, sobretudo, aos materiais da sua construção: taipa e adobes. E
muito pior teria sido se um ciclone que abalou a região pouco tempo antes
tivesse ocorrido na altura da cheia. Uma das coisas que desapareceu com esse
ciclone foi a tamareira da Quinta da Melhorada, a única conhecida pelos
arredores e à qual eu e outros miúdos algumas vezes, nas nossas deambulações
aventureiras, fomos atirar pedras para deitar tâmaras abaixo, apanhá-las e
comê-las.
Porém, o que mais espantou toda a gente, naquele ano e com aquela
cheia, foi o buraco, com muitos metros de diâmetro e três ou quatro de
profundidade, que a corrente vinda do lado da Azinhaga, ao bater na parede da
casa que ali derrubou e fazer redemoinho, abriu bem no centro do cruzamento.
Por sorte, ninguém nem algum animal caiu no buraco antes de o mesmo ter sido
descoberto, pois que a água ficou bastante alta. Tão alta que, da casa da outra
esquina, a dos sogros do Manuel da Carlotina, como já vimos (e também taverna,
mercearia e habitação), foi necessário tirar o seu proprietário, já velhote e
por se encontrar doente, pelo telhado, para metê-lo num barco e levá-lo dali
para onde pudesse receber a visita do médico. O buraco levou, depois, algum
tempo a tapar, e até talvez tenha sido isso que deu origem à mudança do local
da “praça” dali para junto da loja das Motas e do edifício do Registo Civil,
local que, para além do mais, ficava num ponto bastante mais alto.
Na “praça” não faltava, geralmente, dinheiro para um copito.
Copito... é como quem diz, porque o copo mais vezes pedido era o copo de 0,5
litro, que não é assim tão copito como isso. De vinho tinto ou branco, conforme
as preferências. E que muitos emborcavam de uma vez, ficando a limpar os lábios
às costas das mãos. Mas também acontecia pedir-se o copo de 2,5 decilitros. E
até algum mais pequeno, uma vez por outra. Tinha a ver com as disponibilidades
financeiras do bebedor e com o seu nível de saciamento.
Mas, além do que se bebesse por conta própria ou por oferta de um
companheiro, todos os que arranjassem trabalho tinham direito a 0,5 litro de
vinho (às vezes substituído por água-pé), os homens, e a 2,5 decilitros, as
mulheres (as raparigas, melhor dizendo),dado pelos patrões. Era a melhadura,
que, uma vez aceite, tinha o valor de um contrato que prendia o trabalhador ao
patrão por toda a semana. Digo: uma vez aceite, e não: uma vez bebida, porque
as mulheres, no Pombalinho, não bebiam. Era de mau tom. Por isso, iam todas de
garrafinha para a “Praça”, na qual levavam a melhadura para casa.
“Melhadura”, acho que é como nós pronunciávamos, no Pombalinho.
Contudo, não encontro essa palavra em nenhum dicionário consultado. Encontro é
“molhadura”, com o significado de «o m.q. molhadela; (pop.) gorjeta que se dá
para comprar vinho; gratificação» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto
Editora, 6ª edição). Parece não andar lá longe, pelo que poderemos considerar
dois aspectos: ou “melhadura” como regionalismo e com aquele significado
preciso de selar o compromisso do trabalhador com o patrão para a semana
seguinte, ou como a corruptela de um termo de uso mais geral e de significado
algo diferente mas que no Pombalinho e arredores (Azinhaga do Ribatejo e
Reguengo do Alviela, pelo menos) adquiriu o referido significado.
Seja como for, o certo era que fora a melhadura, ao Domingo, na
“praça”, que era obrigatória, às vezes, durante a semana, a pedido dos
trabalhadores ou por iniciativa do patrão, também havia com que “molhar a
garganta”. Valia, então, a generosidade dos patrões, tanto podendo acontecer,
no entanto, que a bebida fosse levada para o local de trabalho e aí consumida
durante o dia, como serem os trabalhadores mandados passar pela adega, à noite,
depois de despegarem do trabalho.
Mas também acontecia , nos dias maiores, que eram precisamente
aqueles em que as tarefas agrícolas eram em geral as mais árduas, fazer parte
das condições ajustadas ao Domingo, na “praça”, ter o trabalhador direito nessa
semana, além do salário, a determinada quantidade de vinho por dia, quantidade
essa variando, a maior parte das vezes, entre um litro e litro e meio. Sim,
isso acontecia, o que significa que poderia suceder ou deixar de suceder. Mas
só assim era em relação ao patrão-lavrador. Com o patrão-seareiro não
acontecia, era de norma. Como era de norma este pagar sempre mais alguma coisa
de jorna do que aquele. O que se justificava pelo seguinte: o patrão-lavrador
era dono de terras, de vinhas e de olivais e, em maior ou menor quantidade,
trazia sempre alguém por sua conta; o patrão-seareiro era aquele que alugava um
ou dois hectares de terra ao lavrador para fazer a sua seara, nesse tempo
predominantemente de melão, e que, por conseguinte, só ia à “praça” quando
precisava de pessoal para o cultivo dessa seara, coisa que normalmente não ia
além de uma ou duas semanas.
Mas havia outro pormenor que importa considerar. Era que a
necessidade de pessoal por parte dos seareiros ocorria numa altura em que a
procura de pessoal era maior, acontecendo que os lavradores poderiam muito bem
absorver então todo o pessoal da “praça” para os seus trabalhos. Ou seja, os
seareiros iam “roubar-lhes” o pessoal de que eles precisavam, por um lado, e,
por outro, ao tornarem a procura maior que a oferta para além do que ela de
qualquer maneira já seria nessas alturas, mais faziam subir o preço da jorna.
Também se poderia dizer que, se assim era, isso aos próprios lavradores se
devia, uma vez que eram eles mesmos que alugavam aos seareiros a terra em que
estes faziam os seus meloais para abastecerem o mercado do Porto, pois era para
lá que era levada, por caminho de ferro, a quase totalidade da produção local.
Saliente-se ainda que um factor não menos importante na diferença
do salário pago pelos lavradores e pelos seareiros, ou pelo menos da sua
expressão em números, era haver quase sempre um retraimento dos trabalhadores
em irem para os seareiros, por recearem que os lavradores (ou os seus
capatazes) os tomassem de ponta e os deixassem de fora sempre que, na “praça”,
a oferta excedesse a procura, o que por vezes acontecia, sobretudo nos meses de
Inverno.
Eu comecei a frequentar a “praça” muito cedo, porque comecei a
frequentá-la pela mão do meu pai. Com efeito, acho que aí com os meus sete/oito
anos já o meu pai me levava com ele à “praça”. Eu gostava de acompanhá-lo.
Primeiro, porque, em geral, os miúdos gostam da particular atenção dos pais e,
naquela idade, talvez ainda mais da atenção do pai, especialmente os rapazes,
do que da atenção da mãe. Depois, porque gostava da atenção que, na “praça”, me
dispensavam os companheiros do meu pai, ou seja, de ser alvo da atenção dos
adultos. E, ainda, porque sempre havia ali uns tremoços e uns amendoins para
trincar, acompanhando a pinga... a pinga que eu julgo ter começado aí a provar,
sabendo-me bem.
A “praça” era o grande ponto de encontro e de convívio dos
camponeses. Depois do almoço, que ao Domingo era mais tarde (lá para o
meio-dia) e melhorado, os trabalhadores vestiam o seu fato domingueiro e dirigiam-se
para a “praça”. Ali se iam juntando, homens e raparigas, em grupos separados
que iam engrossando e se iam subdividindo em grupos mais pequenos, em função de
afinidades ou interesses comuns. Entretanto, os homens iam fazendo a sua
peregrinação às tavernas próximas; os copos iam-se enchendo e esvaziando. Uma
ou outra laranjada, gasosa ou limonada ia saindo também, na sua maior parte
para as raparigas, que iam consumi-las no seu grupo, lá fora, e vinham depois
devolver as garrafas.
Reinava a animação no local da “praça” e num raio para aí de
cinquenta metros, em que as tavernas eram seis: a das Motas, a do José
Taverneiro, a do António de Casal (que bebia mais que os clientes, os quais, de
resto, eram muito poucos), a do Manuel Tadéia (e depois do genro e da filha: o
Diamantino Costa e a Deolinda), a do José Guilherme e a do Mota Alegre.
Bebia-se, conversava-se, caminhava-se para um lado e para o outro, com os
problemas da vida postos para trás das costas por algumas horas, pelo menos
quando já se tinha a certeza de sair dali com patrão, o que geralmente ocorria
nos períodos em que o pessoal não chegava para as necessidades e quando se
fazia parte de um rancho de carácter mais ou menos regular por conta de
determinado lavrador. Isso não dispensava, porém, a ida à “praça”, salvo em
casos em que o trabalhador, por qualquer motivo (visitar familiares, ir a uma
feira ou a uma festa nas redondezas) desejasse ausentar-se da terra no Domingo
e, para o poder fazer sossegadamente, acertasse as coisas com o seu capataz.
Os empregadores (agora chama-se-lhes assim) ou seus representantes
(os capatazes) começavam a chegar mais tarde, juntando-se aos trabalhadores e
sondando o ambiente. No fim de contas, capatazes e trabalhadores eram todos
companheiros. O capataz não passava de um camponês escolhido pelo patrão para
assumir certas responsabilidades, entre elas precisamente a de ir à “praça”,
aos Domingos, arranjar o pessoal necessário para os trabalhos a decorrerem na
semana contígua. Outras eram velar por que o trabalho fosse bem feito, não
deixar o trabalhador descuidar-se na execução das suas tarefas, dar a ordem de
pegar e despegar, de manhã, às horas das refeições e à noite. Tudo isso, mesmo
quando tinha de emparceirar ao lado dos companheiros, fazendo o mesmo trabalho,
o que era de norma quando aqueles não excedessem um certo número. Não estou
certo de qual era esse número, e nem sei se esse número era igual para todos os
capatazes. Creio, no entanto, que andaria entre oito ou dez trabalhadores.
O capataz, enquanto tal, fazia parte da categoria dos criados, que
eram aqueles cujas ocupações se não podiam regular pelo horário dos restantes
camponeses (abegões, maiorais, guardadores de gado, guardas das propriedades,
hortelãos, boieiros, cocheiros, etc.) e cuja remuneração era constituída,
mensalmente, por uma parte em dinheiro e outra em bens de consumo, a chamada
comedoria: tanto de feijão, tanto de azeite, tanto de milho, além, nalguns
casos, de uma manta e de um par de sapatos anualmente ou de dois em dois anos.
Na “praça”, com todos a postos (trabalhadores e capatazes),
chegava então a hora das negociações, com cenários algo diferentes consoante a
ocasião fosse de oferta maior que a procura ou vice-versa, o que muito tinha a
ver com a época do ano em que se estivesse: pouco trabalho e salários mais
baixos nos meses de inverno, com o campo, entre a margem direita do Tejo e a
esquerda do Alviela, inundado às vezes durante semanas; muito trabalho e
melhores salários no resto do ano.
No primeiro caso, o assunto resolvia-se rapidamente. Os capatazes
juntavam os seus homens, primeiro, e as suas mulheres, depois, à sua volta,
lançavam o preço da jorna para a semana que se seguia, x para os homens, metade
disso ou pouco mais para as raparigas, e assunto arrumado, cada grupo a caminho
da adega do respectivo patrão para o fecho do contrato, que é como quem diz,
para o recebimento da melhadura, que, como já disse, os homens consumiam logo
ali e as raparigas levavam para casa, em geral em garrafas de refrigerantes. No
segundo caso (procura maior que a oferta), a história era outra, especialmente
quando chegava a altura dos patrões-seareiros engrossarem a procura. O pessoal
era então disputado. E, naturalmente, tirava partido disso. Cada empregador ia
tentando organizar o seu rancho e lançando a sua oferta de salário... e o
pessoal fazendo finca-pé.
Era a altura em que os novatos arranjavam pela primeira vez quem
lhes pagasse “o preço dos homens”, e que “homens” ficavam daí para diante.
Assim como era a altura em que os de mais idade arranjavam pela última vez quem
os aceitasse por esse mesmo preço, tornando-se depois, uma boa parte deles,
mendigos ou dependentes dos filhos (um mês em casa deste; outro mês em casa
daquele... e voltando ao princípio), que nem para eles tinham que chegasse. O
pessoal, reunindo e trocando impressões, ia então fazendo finca-pé... e o tempo
passando... e as ofertas subindo. Até que, com uma ou outra excepção, se
chegava a acordo, às vezes já noite adentro. E as excepções era não se chegar a
acordo. Uma ou duas vezes me lembro disso ter acontecido, voltando todos à
“praça” na segunda-feira de manhã, numa tentativa de se resolver o assunto
ainda antes da hora de pegar ao trabalho, que na segunda-feira era às 10 horas,
com o almoço já tomado.
De um Domingo me lembro eu em que a jorna deu um salto como,
suponho, nunca antes teria acontecido. Andava eu a trabalhar para os Menezes
(Menezes e Irmão) como “criado dos mandados”, uma espécie de pau para toda a
obra que ocupei durante 15 meses e sobre que noutra parte destas minhas
“Memórias” certamente me debruçarei com mais pormenor. Tinha 13 ou 14 anos.
Estávamos, pelas minhas contas, em 1942, naquela altura do ano em que a
procura, na “praça”, atinge o auge, com os patrões-seareiros a chegarem em
força.
A “praça” era então junto à taverna das Motas e eu tinha acabado
de largar o serviço, porque ao Domingo saía ao meio da tarde. E foi assim que,
passando pela “praça”, pude dar-me conta que a jorna tinha acabado de atingir,
para os homens, 20$00 (20 escudos), quando, na semana anterior, a jorna fora de
7$00. E ficou pelos 20$00, o que já não posso afirmar é se esse foi o preço dos
seareiros, se o dos lavradores, que, normalmente, ficava um ou dois escudos
abaixo.
Nas épocas de aperto (chamemos-lhe assim) imediatamente
anteriores, com certeza que a jorna tinha já chegado acima dos 7$00, mas nada
que se parecesse com os 20$00, para os quais os 7$00 haviam acabado de dar
agora um salto de praticamente o triplo. Nesse Domingo deve ter-se bebido algum
copito mais do que habitualmente, nem que fosse fiado.
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