terça-feira, 25 de março de 2008

Trabalho na Adega


E também trabalhei numa adega, em 1949, no ano imediatamente anterior, portanto, ao do meu alistamento no serviço militar.  Foi na Adega Nova, a maior do Pombalinho. Era a adega das Meiras, de Alpiarça. Tinham uma grande vinha no Reguengo do Alviela e as uvas eram transportadas pelo José Leal, na sua camioneta de aluguer, da vinha para a adega. Passava pela rua em que eu morei até aos 16 ou 17 anos (Rua Carolina Infante da Câmara) e nunca vi aquelas uvas terem sido transportadas de outra maneira.

Quando era miúdo, algumas vezes roubei uvas da camioneta, com outros miúdos. Deve, com certeza, ter sido uma prática de todas as gerações de miúdos das proximidades. Aproveitávamos uma curva muito apertada que a camioneta tinha que dar ao entrar no Pombalinho, carregada, e duas acácias plantadas ali mesmo à beira da curva, atrás das quais nos escondíamos à espera que a camioneta nela entrasse. Corríamos então para a camioneta, pela parte de trás, trepávamos, agarrados aos taipais e, com os pés em cima do pára-choques, deitávamos as mãos aos cachos que enchiam, até bem ao cimo, dois grandes recipientes metálicos (tinas) ajustados às dimensões da carroçaria, e toca a pirarmo-nos.

A vindima das Meiras levava cerca de um mês, feita por um rancho de uma trintena de raparigas. E um rancho de outros tantos homens (mais homem, menos homem) levava o mesmo tempo a fazer vinho na Adega Nova. O que quer dizer que pisei muita uva; fiz muita força agarrado às alavancas das prensas para se espremer até à última gota o mosto que as uvas ainda tinham para deitar; carreguei aos ombros muito cesto bem cheio de engaço, e bem pesado, dos patamares para depósitos cavados no chão, de onde haveria de ser depois levado para o alambique, para dele se extrair a boa bagaceira.

Além do vinho, nas adegas também se fazia sempre, e continua a fazer, pelo que sei, alguma água-pé, bebida de baixo teor alcoólico cujas pipas se abrem pelo São Martinho, em Novembro, consumindo-se a água-pé sobretudo no inverno, quando, fresquinha, e ao ser servida como deve ser, se vêem bolhinhas a subir por ela acima. Agora, que eu sei o que é champanhe, não me parece descabido chamar à água-pé o champanhe dos pobres.
Para fazer a água-pé, espalha-se no patamar, antes de ser exprimido até ao fim, o engaço que esteja a ser prensado, espalha-se-lhe alguma água por cima, mistura-se bem, e volta a ser prensado.
Saiba-se que, tanto na adega como no lagar, o horário de trabalho não era o habitual de sol a sol. Pela especificidade dos procedimentos inerentes ao fabrico do vinho e do azeite, tinha normalmente de entrar-se a trabalhar pela noite dentro. Mas o salário era o ajustado no início, contando-se já com essa especificidade. Quer dizer, não havia horas extraordinárias.

Num dicionário consultado (“Dicionários Editora da Língua Portuguesa”, da Porto Editora Multimédia), adega é a “parte de uma casa em que se guarda o vinho ou o azeite e outras provisões”, e lagar é, numa das suas acepções, “casa com aparelhagem para se fazer vinho ou azeite”, ou seja, adega e lagar são igualmente aplicáveis no que diz respeito ao vinho e ao azeite. 
Sucede o mesmo em relação a bagaço (“resíduo de alguns frutos, caules ou colmos, depois de pisados e espremidos, como o de uva, o de azeitona, e de cana-de-açúcar, etc.”), mas já em relação a engaço, uma das suas acepções, aquela que para aqui nos interessa, o define como “parte que fica do cacho de uvas depois de esbagoado”, se bem que no mesmo dicionário bagaceira tenha como definição “aguardente do bagaço de uva” (o sublinhado é meu). Noutros dicionários consultados, não encontrei diferenças dignas de nota.


Pois bem, no Pombalinho, adega é a casa onde se faz e se guarda o vinho; lagar é - embora, pelas razões atrás aduzidas, hoje certamente já só como conceito - a casa onde se faz e se guarda o azeite; bagaço são os resíduos da azeitona, e engaço os resíduos dos cachos de uvas. O que leva a uma conclusão: é a sabedoria do povo a fazer uso da semântica, para claramente se entender.


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