quinta-feira, 15 de julho de 2010

Incomunicável


A entidade responsável pela construção de estradas (a Junta Autónoma de Estradas, creio eu) havia decidido mandar asfaltar a estrada n.º 365 entre a Azinhaga e Alcanhões, numa distância que deveria andar, se as minhas contas não estão muito mal feitas, à volta de 8 quilómetros. As obras haviam sido atribuídas, por meio de concurso, a dois irmãos da Torre do Bispo de que não recordo osnomes.

 Não muito tempo antes, a mesma estrada havia sido macadamizada entre a igreja do Pombalinho e a Ponte Fernão Leite, tendo a obra decorrido sob a responsabilidade dos mesmos irmãos e tendo eu trabalhado na sua execução do princípio ao fim. Quer isto dizer que o mesmo troço de estrada passou por dois arranjos no espaço de um ou dois anos, primeiro pela macadamização, depois pela asfaltagem.

Obras do género incluíam a colocação, no local, da pedra constante do contrato, que era descarregada na berma da estrada em pedregulhos trazidos das pedreiras em camioneta e britada depois. Assim, os britadores - um grupo de sete ou oito homens, segundo os meus palpites feitos tantos anos passados sobre os acontecimentos, todos dos lados da Torre do Bispo, que era também a terra dos empreiteiros da obra - iam britando a pedra, carga a carga, enquanto eu e um companheiro dos mesmos lados a íamos medindo, utilizando para o efeito uma caixa apropriada com meio metro cúbico de capacidade.

Seja dito, de passagem, que se tratava de um trabalho bem puxado. As forquilhas, com grandes dentes de ferro, eram já bem pesadas, só por si.

Começávamos, os medidores, por colocar a medida no chão, junto a uma carga de pedra já britada. Tínhamos, claro, de escolher chão plano para a assentar, ou de aplaná-lo, caso não dispuséssemos de terreno plano. Depois, íamos metendo a forquilha na pedra, bem rente ao solo, e passando a pedra para dentro da medida, deixando-a cair o mais levemente que fôssemos capazes, porque com quanto mais força a pedra caísse em cima uma da outra mais se esboroavam as esquinas e mais pedra seria necessária para encher a medida. Com menos pedra, pouca que fosse, para encher a medida, ficávamos todos a ganhar, mas os medidores, com o tempo a mais que lhes levava o cuidado que deviam ter na operação, menos certamente que os britadores e os patrões. E com mais cuidado ainda tínhamos de o fazer quando aparecia a fiscalização – aconteceu duas ou três vezes – para verificar se a medição estava a ser bem feita.

Como em geral o espaço não chegava para a pedra ficar na berma da estrada em montes de 0,5 M³, muitas vezes tínhamos que aplanar o monte e assentar-lhe a medida em cima, para nova medição.
Chegando a acontecer eu e o meu companheiro da medição não termos pedra para medir, por não haver montes de brita prontos, britávamos nós também alguma de vez em quando. Qual o preço pago aos britadores por metro cúbico (todo o trabalho era feito de empreitada), não me lembro, mas por cada metro de pedra medida eram-nos pagos 2$00, ou seja, 1$00 para cada um. Todo o trabalho foi feito da Azinhaga para Alcanhões e teve o seu início em dias pequenos e chuvosos, no princípio do ano, tinha eu 18 anos, feitos em Novembro anterior, ou seja, em Novembro de 1947.

Andávamos então a medir a pedra britada mais ou menos a meio da estrada entre a Azinhaga e o Pombalinho quando o Chico Fataça começou, todos os dias de manhã, a passar por mim e pelo meu companheiro, da Azinhaga para o Pombalinho, onde andava a fazer blocos de cimento. O Chico Fataça tinha alguns anos mais que eu, pelo menos uns três ou quatro. A bem dizer, mal nos conhecía-mos. Mas ao encontrarmo-nos diariamente ali na estrada durante algum tempo começámos a conversar, falando-me ele então no Esperanto. Acho que já tinha ouvido alguma coisa ao meu pai sobre essa língua internacional e a sua aprendizagem por alguns azinhaguenses, entre eles exactamente o Xico Fataça, pensando eu que o conhecimento disso por parte do meu pai só podia vir do facto de ele e o Xico Fataça se terem encontrado antes e terem já falado sobre isso. Nesses nossos encontros na estrada, o Chico Fataça contou-me então o que se passava em relação ao Esperanto e à sua aprendizagem na Azinhaga.

O Esperanto fora criado em 1887 por Zamenhof (Lejzer Ludwik Zamenhof, oftalmologista judeu polaco – 1859/1917) com vista a tornar a comunicação entre indivíduos com línguas maternas diferentes mais fácil e havia atingido uma certa notoriedade, talvez dada a sua simplicidade, pois era constituída apenas por dezassete regras bastante simples, por um lado, e a vontade de aprender de muita gente que não tivera possibilidades de ir além do 2.º Grau da Instrução Primária, por outro.
Acontecia, porém, que em Portugal a sua aprendizagem não era livre. Estávamos no reinado de Salazar e ao Salazar e seus sequazes não podia agradar, naturalmente, o que quer que fosse que visasse facilitar as relações internacionais. Talvez deitando por contas, no entanto, que muito simplesmente proibir a aprendizagem do Esperanto se tornaria demasiado caricato aos olhos de quem quer que fosse, o salazarismo limitou-se a deitar mão de um processo que, a seu ver, por certo limitaria muito a sua aprendizagem: permitir que a aprendizagem se processasse somente por correspondência e individualmente. Fosse como fosse, o certo é que o Esperanto estava em expansão. Como chegara à Azinhaga, não sei, nem nunca soube. O que soube foi que o Xico Fataça fora o primeiro estudante do Esperanto na Azinhaga e que depois levou outros azinhaguenses a seguirem-lhe o exemplo. Assim como levou a mim e levaria qualquer um que gostasse de aprender.

Naquele tempo, os mais pobres não tinham hipótese nenhuma de ir além do 2.º Grau da Instrução Primária. E mesmo isso nem todos. Muitos, na idade de irem para a escola, iam era trabalhar, como já referi noutra parte destas minhas memórias (“Inspeção para o Serviço Militar”).
Casos como o da ilustre figura de cidadão e de matemático que foi Bento de Jesus Caraça, a quem os patrões dos pais assumiram o encargo dos seus estudos após a sua aprovação no Ensino Primário, constituíam, como é bom de ver, excepção assinalável. Como excepção igualmente assinalável era um jovem ir para a tropa analfabeto e daí a alguns anos estar licenciado, por sinal, no caso a que me vou referir, também em matemática.
E refiro-me a Abel Febra, que foi o meu professor de matemática no 2.º Ciclo do Liceu, na escola que a PSP abriu nas instalações anexas à Esquadra de Santa Marta, em Lisboa, primeiro para que os polícias que até então tivessem sido admitidos apenas com a 3.ª classe pudessem fazer a 4.ª classe, grau que entretanto passara a ser o exigido para a admissão, e depois o 1.º e o 2.º ciclos do curso geral dos liceus, tendo o 2.º ciclo sido criado precisamente no ano a seguir àquele em que eu fizera o 1.º ciclo, o que me facultou continuar o estudo e fazer, assim, também o 2.º ciclo.




Para imagem ampliada clique aqui



O Abel Febra aprendeu a ler e escrever nas Aulas Regimentais do quartel onde cumpriu o serviço militar, tendo, graças a isso, podido depois concorrer para a P.S.P., na qual veio a ingressar, em Lisboa.
Já na polícia, o Abel Febra encontrou-se com alguém (um Aspirante a Oficial Miliciano que tinha sido seu professor nas Aulas Regimentais) que lhe proporcionou, gratuitamente – o salário dos polícias era de fome -, a frequência de um colégio no Lumiar, no qual em três anos fez o ensino liceal, um ciclo em cada ano. Note-se que o 1.º Ciclo correspondia a dois anos de escolaridade, o 2.º a três e o 3.º também a dois. Tendo tido depois acesso à Universidade, em quatro anos (período normal) fez a sua licenciatura em matemática, graças ao que foi colocado, ainda guarda de polícia, como professor de matemática, no 2.º Ciclo, na escola da P.S.P. Aí nos conhecemos, tendo ele ficado para mim, sobretudo pela sua naturalíssima modéstia, como uma daquelas pessoas que temos a grande felicidade de encontrar na vida.

Pois bem, eu gostava de aprender, pelo que o resultado dos meus referidos encontros com o Xico Fataça foi ver-me daí a pouco a endereçar o meu pedido de inscrição no curso de Esperanto à instituição que, sediada já me não lembro onde, mas creio que lá para um dos bairros periféricos de Lisboa, o ministrava por correspondência. Como disse, a aprendizagem só era autorizada por correspondência e individualmente. Acontecia, contudo, que os 6 ou 7 da Azinhaga que já se tinham inscrito e estavam a fazer o curso se reuniam, à noite, na barbearia do pai do Xico Fataça, depois de ele fechar a loja. E não tardou muito que eu, que por sinal acabara de comprar bicicleta, o que me tornava o percurso mais fácil, começasse a ir-me juntar a eles.

Além do Xico Fataça, lembro-me que também faziam parte do grupo o Francisco Cebola (trabalhador rural), que era o mais velho de todos, o Fernando Braga (barbeiro) e o contínuo da Casa do Povo, que era ainda um meu parente, por parte da minha mãe, mas do qual há muito esqueci o nome. Havia pelo menos mais 2, ambos trabalhadores rurais. A juntar-se ao grupo veio também, uma vez ou duas, um valfigueirense tratado por António “Bartolomeu”, que suponho ter sido quem deu o curso a conhecer ao Xico Fataça. Bartolomeu, soube-o depois, era o nome próprio do pai (e não o seu apelido), que era hortelão de um dos Infantes da Câmara (o José, creio), em Vale de Figueira. Eu e o António “Bartolomeu”, que era estucador, viríamos a encontrar-nos e a conviver muitas vezes. A seu convite, logo ao princípio do nosso conhecimento, visitei-o uma vez em casa dos pais, num Domingo em que também aí se encontravam uma sua irmã e o marido, idos do Reguengo do Alviela, onde residiam, o estucador que lhe ensinara o ofício e uma sua filha, idos de Santarém.

Na fotografia que se segue, tirada no quintal do António Palmeirão em 1 de Agosto de 1948, estamos eu, à direita, e ele, a comer melão.

Recordemo-nos que em 31 de Julho, 1 e 2 de Agosto desse ano, decorreram no Pombalinho as festas em “Honra e Louvor do mártir S. Sebastião”. Estávamos, portanto, em dia de festa.






Voltando ao nosso curso de Esperanto em que nos juntávamos, julgo que não mais de uma vez por semana, tudo ia muito bem, até que as noites começaram a ficar pequenas e deixámos, por isso, de poder utilizar a barbearia do pai do Xico Fataça. Era um tempo em que as barbearias estavam abertas todos os dias (nem horário de trabalho tinham ainda, julgo eu) e se aos barbeiros apetecia ter um dia de folga era à segunda-feira, nunca aos sábados ou aos Domingos, pois estes eram os dias de maior afluência para uma clientela que trabalhava de Sol-a-Sol de segunda-feira a sábado.

Tudo ia muito bem… até ao dia em que - andava eu na medição da pedra britada exactamente entre a loja das Motas e as instalações do Registo Civil, junto ao gradeamento que separa esses dois locais - vejo passar um carro celular, popularmente conhecido por ramona, e alguém a acenar-me de dentro da viatura, por detrás das grades. Se nessa altura reconheci quem acenava, passou-me por completo, mas não me passou que daí a pouco a prisão do Xico Fataça, do Francisco Cebola e do Fernando Braga era o assunto de todas as conversas na Azinhaga e no Pombalinho.
Eram eles, pois, os “passageiros” da ramona que me acenavam, com destino a Santarém, e toda a gente sabia que a justificação apresentada foi a aprendizagem do Esperanto em grupo. O que me levou logo a deitar por contas que o melhor era ir pondo as barbas de molho.
O que se propalava então era que os esperantistas da Azinhaga, não podendo já dispor da barbearia do pai do Xico Fataça para nos reunirmos, pelos motivos acima mencionados, se tinham lembrado - não se percebe lá muito bem como, dada a proibição do estudo do Esperanto em grupo e o papel desempenhado pelas Casas do Povo no Estado Corporativo que as havia criado - de pedir à Direcção da Casa do Povo um espaço para o efeito. Mais se dizia que a Direcção, não se sentindo autorizada a deliberar em tal matéria, submetera o assunto à entidade concelhia, a qual, antes de mais nada, quis saber quem eram os interessados.
E o resultado foi o que se viu: metê-los na cadeia. E eu sempre pensei que para isso muito deve ter contribuído o facto de entre eles estar o Francisco Cebola, pessoa muito conceituada entre os companheiros e cuja oposição ao Estado Novo era bem conhecida. Era “do contra”, ou “do reviralho”, como então se dizia, pelo que o mais certo era já há muito andar na mira da PIDE (ou da PVIDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – como começou por chamar-se). Esta e todo o aparelho fascista que a criara não precisavam de justificar as prisões que faziam, mas talvez não menosprezassem a apresentação de alguma motivação, pelo menos nalguns casos.

Eu ia então na quarta lição e tinha todo o material relacionado com o curso numa prateleira que o meu pai, que gostava muito de ler, mandara fazer e colocara numa parede da cozinha para nela pôr os poucos livros e outros papéis que havia em casa. Estavam lá, por exemplo, vários números de “O Mosquito”, revista infantil que eu assinara. Falando de livros, um que lá estava era “Saúde e Amor na Vida Sexual”, que eu havia comprado à sociedade com o meu primo Joaquim Correia dos Santos (o “Canca”), um livro que, por alguma analogia com o curso de Esperanto, só podia ser adquirido através dos Correios, à cobrança. Outra coisa que de vez em quando ocupava o seu lugar na dita prateleira, nunca por muito tempo, até porque era preciso fazê-la girar, era “O Avante !”, então clandestino, e por isso deixado pelos caminhos durante a noite. Por sinal, na altura da prisão do Xico Fataça, do Francisco Cebola e do Fernando Braga estavam dois exemplares de “O Avante !” bem arrumadinhos na prateleira, os quais, como está bem de ver, tratei de tirar imediatamente dali para fora. Tudo o mais que lá estava, lá ficou, pois mais nada nos pareceu subversivo, nem a mim nem ao meu pai. E fiquei à espera, mais ainda depois de, passados uns dias, terem ido à Azinhaga buscar mais 3 do grupo.

E chegou o meu dia. Estava então na medição da pedra mesmo em frente à casa do António Abegão, na berma do outro lado da estrada. Julgo que passava já um bom bocado do meio-dia quando o Júlio Barros, que era então o regedor da freguesia, se chegou ao pé de mim e me convidou a acompanhá-lo à sapataria (a sapataria do pai, o António Barros, em que ele e o irmão, também António, igualmente exerciam a profissão). A distância a percorrer era curta, mas deu para o Júlio Barros me dizer por que é que me viera chamar e fazer os possíveis por tranquilizar-me. Ao chegarmos à sapataria, apresentou-me à brigada da PSP, constituída por 2 elementos e chefiada pelo subchefe Delgado, o que significava que em Santarém, como certamente em muitas outras capitais de Distrito, não havia delegação da PIDE e que, por conseguinte, a PSP é que exercia as funções específicas da primeira. E dali partimos, passado pouco, para minha casa, para a inevitável busca. Uma busca, aliás, muito ligeira, para meu espanto, face ao que ouvira dizer sobre as buscas feitas nas casas dos presos na Azinhaga, onde até os colchões haviam revirado. Em minha casa apenas vasculharam na prateleira acima referida. Lá deram com as lições de Esperanto, a que já não sei o que fizeram (se as levaram se as deixaram ficar) e com o livro “Saúde e Amor na Vida Sexual”, sobre o qual o subchefe Delgado me observou que livros como aquele, sim, é que eu devia ler. Para a diferença de rigor na busca, contribuiu, com certeza, o subchefe Delgado e o colega terem ido ao Pombalinho numa boleia do João Andrade, que era do Pombalinho, onde ainda trabalhara no campo com o meu pai, mas que depois aprendera o ofício de pedreiro e se tornara mestre-de-obras em Santarém. Contou o Delgado (versão pouco convincente, diga-se) que ainda estavam em Santarém, ele e o colega, a prepararem-se para irem para o Pombalinho, quando se encontraram com o João Andrade e que então lhe perguntaram se ele não queria ir com eles até à sua terra. De resto, eu não vi o João Andrade senão quando entrámos todos no seu carro para marcharmos para Santarém. Antes, aproveitara para visitar a família. Não fosse o caso de ir preso, o mais certo era até ter achado que estava a dar um belo passeio, pois o Delgado decidiu dar a volta pela Azinhaga, Ponte da Golegã, Chamusca, Vale de Cavalos, Alpiarça e Almeirim, pondo assim de parte o caminho mais curto por Vale de Figueira, Alcanhões e Ribeira de Santarém.

Passei assim por terras onde nunca tinha estado (Vale de Cavalos, Alpiarça e Almeirim), e tomei um lanche num Café (em Almeirim), coisa que antes nunca me tinha acontecido. Tomei-o, claro, com os meus captores e com o João Andrade, todos sentados à mesma mesa. E por aqui se pode ver que fui sempre muito bem tratado. E é isso: penso que não teria sido a mesma coisa, do princípio ao fim da prisão, se o João Andrade não tivesse estado, de qualquer maneira, metido no caso. O facto mais saliente, porém, foi eu não ter passado de Santarém, enquanto todos os outros, com excepção do Fernando Braga (mas já veremos o que lhe aconteceu), ao chegarem a Santarém haviam sido logo encaminhados para Lisboa e enfiados nas prisões da PIDE (Aljube ou Caxias), de onde só regressaram aos seus lares passados cerca de três meses.

Chegados a Santarém, ao cair da tarde, fui levado para a cadeia e metido numa cela, incomunicável. E foi aí que, ao ser encaminhado por outras celas, que se comunicavam, para chegar à que me fora destinada, passei, com o meu acompanhante, por uma cela onde estava o Fernando Braga, o que levou o polícia a exclamar, dirigindo-se-lhe: –O quê?!... Você ainda aqui está!!!... Estava; não havia dúvida que estava. E fiquei então a saber que ele era para ter sido solto no próprio dia da prisão (o que sempre me fez supor que teria tido alguém que interferira por ele: o Serrão Faria?...), mas que se haviam esquecido dele. E já lá iam oito dias. É, de resto, o lembrar-me do que aí se disse que me leva a lembrar-me também que a minha prisão ocorreu exactamente oito dias depois da prisão dos três primeiros.

Fui então deixado numa cela com uma janela (gradea-da, já se vê) que dava para um quintal ajardinado que me pareceu ser onde o pessoal da limpeza da cidade arrecadava o seu material. E mais uma vez me senti um privilegiado, porque nenhuma das celas por onde passara até chegar ali tinha qualquer janela. Ter-me-ia sentido ainda melhor se não tivesse tanto percevejo por companhia, mas, enfim, não se pode ter tudo, não é? Ali fui deixado e ali fiquei entregue a mim próprio até uma hora já bem avançada da noite, quando me foram bus-car para interrogatório, pelo subchefe Delgado, no Comando da Cidade. Tendo voltado, assim, a percorrer, em sentido inverso, o caminho que levava à minha cela, verifiquei que o Fernando Braga já ali não se encontrava.

No interrogatório, que não durou muito tempo e findo o qual voltei à companhia dos percevejos, nada digno de registo se passou, a não ser mesmo a brandura com que o mesmo decorreu. Por onde se vê que aqui continuou a minha boa estrela.

O dia seguinte passei-o a olhar para o espaço ajardinado e para os movimentos de quem por ali passava ao alcance da minha vista, com intervalos para engolir o que me foi trazido para comer. Até que, já ao findar do dia, novamente me foram buscar para me conduzirem ao Comando, onde, pela voz do subchefe Delgado, me esperava a boa nova da minha soltura. Mas esclareceu-me ele, então, que para que pudessem soltar-me tiveram que apagar (ou riscar) o nome do meu pai de um abaixo-assinado que tinham no Comando a pedir a libertação dos presos do Tarrafal. Eu lembrava-me bem desse abaixo-assinado ter ocorri-do. Tal acontecera, aliás, não havia ainda muito tempo.

Estava eu, um dia, na alfaiataria do Manuel Braga, quando entrou o Luís Cordoeiro (o “Camões”), já não me lembro se acompanhado de alguém, mas creio que sim, com umas folhas de papel nas mãos. E então, era isso, andavam a pedir assinaturas para um abaixo-assinado a favor da libertação dos presos da PIDE no Tarrafal. Eu até quis assinar, também, mas a minha assinatura não foi aceite por, como me foi então explicado, eu não ter ainda feito os 18 anos. E não sabia que o meu pai tinha assinado. O meu pai… que no dia seguinte ao da minha prisão apanhou o primeiro comboio de Mato de Miranda para Santarém, para tentar conhecer a evolução do caso e fazer o que lhe fosse possível, se alguma coisa lhe fosse possível. Soube depois que se tinha dirigido a casa duns primos que tínhamos em Santarém, cujo chefe de família se chamava Eugénio e era o delegado de vários jornais e revistas vendidos em Santarém e, por isso, presumivelmente muito susceptível de ser bem atendido por gente influente. Pelo menos o meu pai dizia, depois, que o primo Eugénio tinha ido falar com o Comandante da Polícia de Santarém, intercedendo por mim.

Já agora – e já que nestes meus escritos deixo a memó-ria à solta – não virá muito a despropósito dizer que eu e o meu irmão, que fizemos o exame da 4.ª classe (2.º Grau de Instrução Primária) no mesmo ano, ficámos em casa destes meus primos durante mais de uma semana, no intervalo entre a prova oral e a prova escrita, que sempre decorriam na sede do Concelho. E diz-me também a memória que foi num dia que eu e o meu irmão fomos passar com estes primos a uma sua propriedade próxima da cidade que pela primeira vez, eu com 11 anos de idade e o meu irmão com 13, conhecemos o gosto da manteiga, espalhada numa fatia de pão numa das refeições ali tomadas.

Acredito absolutamente (não faria, de resto, o menor sentido duvidar, como não significa esta minha observação, evidentemente, o menor desmerecimento pelo que ele tenha feito) que o Eugénio dos jornais, como era mais conhecido em toda a cidade, tivesse interferido por mim junto do Comandante da Polícia, mas creio que o mais certo era ele nem ter tido a oportunidade de o fazer se eu, como os outros presos pelo mesmo motivo (excepto, repito, o Fernando Braga) tivesse seguido logo no mesmo dia para uma das enxovias da PIDE. E julgo que também o mais certo era eu ter seguido esse caminho sem a boleia do João Andrade à brigada chefiada pelo subchefe Delgado.
Disse-me ainda o subchefe Delgado, ao despedirmo-nos, que eu podia continuar a estudar o Esperanto, desde que cumprisse o que sobre isso estava regulamentado.

Mas eu não quis continuar…


13 de Junho de 2010


segunda-feira, 22 de março de 2010

O dia da Inspecção!


INSPECÇÃO PARA O SERVIÇO MILITAR


À inspecção militar iam, em cada ano, os indivíduos do sexo masculino que nesse ano completavam vinte anos de idade. Em 1949, nascidos, por conseguinte, em 1929, éramos 19, o maior número até então registado no Pombalinho. Por ordem alfabética, aqui vão os nossos nomes:

Alberto Gomes, António Andrade Leal, António Costa, António Domingos, António Maria Duarte, Cipriano, Ezequiel Andrade Barreiros Mateiro, Francisco Bispo, Guilherme Afonso dos Santos, João Fataça, Joaquim Duarte, José Marcano, José Narciso, Manuel Cachado, Manuel Cardoso, Manuel Carvalho, Victor.

Falta o nome de um, porque, tendo nascido no Pombalinho, de lá saiu, com os pais, muito novo ainda. Juntou-se a nós no dia da inspecção, parece que vindo de São Vicente do Paul ou do Sobral, mas não fixei o seu nome. Não se juntaram a nós, no dia da inspecção, o Manuel Cachado e o Manuel Cardoso. O primeiro porque tinha ido para Lisboa aos 16 ou 17 anos e providenciou para ir à inspecção em Lisboa. O segundo porque tinha ido para Angola, com os pais, dois ou três anos antes, e por lá terá ido também à inspecção.


Alguns já faleceram. Que eu saiba, o António Maria, o Ezequiel Mateiro, o Joaquim Duarte, o José Narciso, o Manuel Cardoso, o Manuel Carvalho, o Sofio Félix e o Victor, que, embora quase se não notasse, era deficiente físico. Alguns dos nomes estão completos: os do António Leal, do António Maria, do Ezequiel Mateiro, como eram tratados entre a malta, e o meu. Eu era tratado por Guilherme Afonso. Outros nomes não sei se estão completos, mas sei (ou estou convencido disso) que são nomes e apelidos reais: Alberto Gomes, António Domingos, Francisco Bispo, João Fataça, Joaquim Duarte, José Marcano, José Narciso, Manuel Cachado, Manuel Cardoso, Manuel Carvalho e Sofio Félix. Do Cipriano e do Victor só me lembro dos nomes próprios, o que se deve, julgo eu, ao facto de não haver naquele tempo outro Cipriano nem outro Victor no Pombalinho e ficarem, por isso, perfeitamente identificados sempre que alguém se lhes referisse apenas pelo nome próprio. O Cipriano era filho de um pedreiro que foi para Santarém com a família pouco depois do Cipriano, que veio a aprender o ofício do pai, ter completado a instrução primária (4ª classe). Suponho que o apelido dessa família era António. Pelo que o Cipriano seria, assim, Cipriano António. O Victor era filho de um sapateiro, que, salvo erro, fazia parte duma família de apelido Caetano. E a ser, de facto, assim, o Victor seria Victor Caetano.


O DIA DA INSPECÇÃO


O dia da inspecção era tradicionalmente um dia de festa para os que iam à inspecção. Antes, compravam-se foguetes e morteiros para deitar nesse dia.Naquele ano, fomos comprá-los eu e o Francisco Bispo, porque éramos os dois que tínhamos bicicleta. Andámos entre uns quinze a vinte quilómetros, para os lados do Entroncamento, mas onde fomos, exactamente, não me recordo. Talvez à Atalaia.

Na véspera da inspecção, a malta - que casa de banho não tinha e poucas vezes tomava banho, como toda a gente, então - ia tomar banho numa das alvercas ou lagoas mais próximas, como sempre em pêlo e normalmente em grupo, o que pode ser ilustrado com a fotografia que se segue e cujos banhistas são, da esquerda para a direita: Joaquim Duarte, António Maria, António Leal, Manuel Barão, José Leal, Ezequiel Mateiro, Manuel Bernardino e Francisco Rodrigues.






Como se vê, consultada a lista patente no início deste texto, quatro dos banhistas fazem parte dela. Eu também lá estava, mas a tirar a fotografia. A máquina não tinha dispositivo que permitisse engatilhá-la e ir colocar-me no grupo para ficar também na fotografia. Era simples de mais para isso. Desses quatro e de mais quatro dos que fomos à inspecção nesse ano, podem ver-se fotografias individuais mais abaixo.
Falando ainda do banho da véspera, seis anos antes (1943) esse banho fora fatal para o António Fonseca, mais conhecido por António do Romeu (nascera em 1923 e era filho de Romeu Fonseca, que teve um estabelecimento na Rua de Santo António). Não sabia nadar, caiu num pego e afogou-se. Por sinal, assisti, e assistiu muita gente, algumas horas depois, à retirada do seu corpo da água, por uns poucos - entre eles o Joaquim Justino, excelente mergulhador - que, abnegadamente, tinham andado à procura do corpo. Nesse ano, escusado seria dizê-lo, o dia da inspecção não foi um dia de festa.

Como transporte para a inspecção alugava-se uma ou duas carroças, consoante o número de mancebos a apresentar-se no Distrito de Recrutamento e Mobilização, em Santarém (sede do Concelho). A partida fazia-se bem cedo, debaixo do estralejar dos foguetes, e o regresso ao fim do dia, com os foguetes poupados para que o maior estardalhaço acontecesse já ao chegar ao Pombalinho, anunciando aos quatro ventos que a malta vinha aí.

Cada um levava o seu farnel, porque comer em restaurantes estava fora do alcance da maior parte, senão da totalidade. Comia-se onde melhor calhasse, entre a inspecção e a ida às putas. A ida às putas, pois... A prostituição em Portugal era então regulada oficialmente. As prostitutas matriculavam-se numa qualquer repartição camarária e ficavam obrigadas a exames sanitários periódicos, sendo-lhes permitido habitar conjuntamente casas em que exerciam a sua actividade, aí esperando pelos clientes. Alguns anos depois o governo de Salazar decidiu tornar a prostituição ilegal, como se com isso pudesse bani-la. Efectivamente, esse era o dia em que a maior parte dos rapazes das aldeias perdia os três, ou seja, a virgindade. Ou porque antes disso nem sequer tenham ido onde houvesse casas de prostitutas (e fazê-lo de outra maneira antes do casamento, naquele tempo e naqueles meios, era ousadia causadora de graves dissabores) ou porque, tendo-o feito, não haviam usufruído de condições favoráveis. O dia da inspecção era, pois, o grande dia, com todos os receios que, apesar de tudo, implicava a primeira vez. Nunca se sabia como iria ocorrer o desempenho. E até acontecia haver um ou outro que se baldava. Porque o seu temor ou timidez fossem maiores, ou porque as suas inclinações sexuais não fossem exactamente para o outro sexo. Casos em que o dia da inspecção não seria exactamente um dia de festa, bem se compreende porquê, assim como o não seria para os que tinham horror à vida militar e deitavam por contas que aquele iria ser o dia da leitura da sua sentença.
Um tio meu, por exemplo, irmão do meu pai e de seu nome verdadeiro João dos Santos, mas conhecido por João Afonso, por não querer ir à tropa desapareceu do Pombalinho antes da data da sua ida à inspecção. E só se soube dele passados alguns anos, quando um grupo de gadanheiros do Pombalinho o encontrou nos campos de Vila Franca de Xira. Assumira o nome de António Canário, e António Canário ficou para o resto da vida, que terminou numa barraca que ardeu com ele lá dentro, segundo se supôs por ter adormecido com o cigarro aceso, nos mesmos campos em que fora encontrado pelos gadanheiros. E o filho que teve, Canário ficou, o afamado campino José Canário. E os filhos deste, Canários são.

Voltando ao dia da inspecção para o serviço militar e à perda da virgindade, disse eu que esse era o dia em que tal acontecia à maior parte. E assim era, de facto. Mas aqueles a quem tal não acontecia nesse dia, nem todos era por se esquivarem, como acima ficou dito. A um ou outro isso também não acontecia dessa vez, simplesmente por já ter acontecido antes. De mim próprio posso falar. E também do António Leal. Efectivamente, isso não nos aconteceu, a mim e ao António Leal, no dia dessa inspecção de 1949. Mas foi também por altura duma inspecção, dois anos antes. Eu, ele e mais dois pombalinhenses – o Manuel Barão (Manuel António Correia Bento, de seu verdadeiro nome) e o Júlio Freire (Júlio da Conceição Silva), nascidos em 1930 – concorrêramos para a Marinha, como voluntários, aos dezoito anos.

A inspecção para a Marinha era feita em Lisboa, no Hospital da Marinha. E foi então que eu e o António Leal visitámos uma casa de prostitutas, no Bairro Alto. Quanto a essa inspecção para a Marinha, seja dito, já agora, que chumbámos os quatro, o que, pela parte que me tocou, deu origem a uma grande frustração, porque queria muito ir para a Marinha, como o meu irmão, e tinha assumido isso praticamente como certo. A mim, o médico que me observou, em pelote e a andar para lá e para cá, conforme as suas indicações, teve o desplante de me dizer, no fim, que eu tinha uma perna mais comprida que a outra, coisa que nem eu nem ninguém alguma vez tinha notado. Mas esse será assunto para outra altura. E sê-lo-á também o padrão então reinante nas relações entre namorados, o que levava a que a primeira vez, por parte dos rapazes, fosse, em geral, com uma prostituta. E depois mais umas tantas vezes, sempre que a oportunidade surgisse e houvesse dinheiro para isso (para aí uns 10$00), inclusivamente durante o cumprimento do serviço militar, para os que o cumpriam (terra onde houvesse um quartel não lhe faltava, com certeza, uma casa de prostitutas), e até ao casamento, o que não deixaria de ter, certamente, reflexos negativos na futura vida afectiva dos casais.


O dia da inspecção, que terminava com um baile abrilhantado por um acordeonista pago pelos inspeccionados, era também o dia em que alguns vestiam um fato e calçavam um par de sapatos pela primeira vez. Melhores ou piores, segundo as posses dos respectivos pais, já se vê.





Dos que fomos à inspecção em 1949, consegui fotos destes 8. Note-se que os primeiros 6 estão equipados. Com efeito, estas suas fotos foram recortadas de uma fotografia conjunta tirada antes de um jogo de futebol Azinhaga-Pombalinho. Acrescente-se que os 6 estavam entre os titulares da equipa da nossa terra. E não havia substituições, nesse tempo...

19/02/2006
Guilherme Afonso

P.S. Tenho este artigo escrito já há bastantes anos. E como em geral faço a tudo o mais que tenho escrito e se mantém inédito, calha às vezes voltar a pegar-lhe. E quando isso acontece, não raro é dar ainda um retoque aqui ou ali, procurando melhorar a forma. Mais vírgula num lado, menos vírgula noutro; vocábulo trocado por outro que então considero melhor significar o que quero dizer, algum arranjo no sentido de tornar o texto mais claro, e coisas assim. E foi o que aconteceu mais uma vez, ao pegar agora nesta parte das minhas memórias intitulada “Inspecção para o Serviço Militar”, cuja última mexida, pela data que contém, foi em 19 de Fevereiro de 2006.

Porém, desta vez alguma coisa mais me é propiciado fazer, não só em termos da forma, mas também do conteúdo. E, isso, graças a uma base de dados referente às matrículas na escola primária do Pombalinho naqueles recuados tempos, introduzida na Internet pelo Manuel Gomes, base de dados essa em que pude verificar os nomes completos dos meus companheiros de inspecção que frequentaram a escola, assim como ver quais os que a frequentaram e quais os que o não fizeram.
Em relação a esse aspecto (o do conteúdo), considerei preferível, no entanto, não mexer no texto e acrescentar-lhe este P.S. com os novos elementos que a referida base de dados me permitiu conhecer.
Assim, posso agora completar os nomes do António Domingos, do Cipriano, do Manuel Cachado, do Manuel Cardoso e do Manuel Carvalho, que são, respectivamente, António Domingos Correia, Cipriano António Oliveira, Manuel Nunes Cachado, Manuel Sequeira Cardoso e Manuel Carvalho Cruz. Por outro lado, o companheiro de tantos anos que eu mencionei como sendo António Maria Duarte, por estar convencidíssimo que o seu nome completo era esse, está nessa base de dados como António Maria, apenas. Interessante, parece-me, será ainda conhecer quais dos18 companheiros constantes da relação inicial não frequentaram a escola, o que significa que com a idade de irem para a escola andavam era já a guardar gado, como ajudantes dos maiorais, ou a fazer qualquer outro trabalho para ajudarem os pais. E são eles: o António Costa, o João Fataça, o José Marcano e o José Narciso. Mas com a consulta à base de dados, um caso se me apresenta muito impreciso. É o que diz respeito ao Victor, nome que, aliás, aparece grafado Vitor. E essa imprecisão começa por eu estar convencido que o Victor fazia parte do grupo dos que foram à inspecção para o serviço militar em 1949, o que significa que teria nascido em 1929, quando a data do seu nascimento que consta na base de dados escolar é a de 24 de Janeiro de 1928. Engano meu quanto à sua ida à inspecção naquele ano? Ou lapso na folha de matrícula quanto à sua data de nascimento? E isto, deitando por contas que se trata do mesmo Victor, o que se me afigura como muito provável, visto não ter nunca conhecido outro Victor no Pombalinho e ter a certeza que andámos juntos na escola. Mas o seu nome completo - e é ele, respeitando a grafia da folha de matrícula, Vitor Manuel Salazar Caitas - não me deixa certeza nenhuma. E os nomes dos pais - José Anacleto e Conceição Calva - também não. Ora, como digo acima, no artigo inicial, o pai do Victor parecia-me fazer parte de uma família de apelido Caetano, quando afinal o seu apelido era Anacleto. Isso, por si só, não significa contudo grande coisa. Havia muitos casos em que as pessoas eram conhecidas por um sobrenome que não era realmente o seu. Quanto ao seu nome próprio, tenho ainda na ideia que era realmente José. Da mãe do Victor, lembro-me, de ouvir dizer, que tinha abandonado o marido e o filho e se fora embora do Pombalinho. Eu não cheguei a conhecê-la.
Quanto a falecimentos, tive conhecimento de que depois da minha anterior mexida no texto (19/02/2006, como acima mencionado), já faleceu também o Francisco Bispo.
E por aqui dou por terminado, desta vez espero que definitivamente, este meu capítulo das minhas “Memórias à Solta”.


26 de Julho de 2009
Guilherme Afonso





quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Barbearias e Alfaiatarias


Nos dias mais pequenos do ano (Outono e Inverno) e aos sábados em geral, os adolescentes que ainda não namoravam (esses iam para o namoro) passavam muitas vezes o serão pelas barbearias e pelas alfaiatarias, especialmente por aquelas em que o barbeiro e o alfaiate fossem jovens também. Embora uma aldeia, certamente não das maiores, o Pombalinho chegou a ter, naqueles tempos (décadas de 30,40, 50), nada mais nada menos que 5 barbearias e 3 alfaiatarias.

As barbearias eram as do António Teixeira (conhecido por António Barbeiro), do João Anacleto (João Barbeiro), do Diamantino Costa, do Carlos Cavaco (Cavaquito) e do Veríssimo Duarte.
Todas instaladas em cubículos, três na Rua de Cima (Rua Barão de Almeirim), e duas na Rua de Santo António, algumas delas ficavam bem próximas umas das outras.
Na Rua de Cima situavam-se a do António Teixeira, entre o prédio dos Barões de Almeirim e a mercearia da senhora Anita, com uma entrada para as traseiras entre o prédio e a barbearia; a do Diamantino Costa, que depois de aprendido o ofício em Santarém se estabeleceu no Pombalinho num apartamento (o primeiro à esquerda, no rés-do-chão) do edifício pegado à Casa do Povo, pertencente a Joaquim Gonçalves Ferreira, mas que depois de casado se mudou para um compartimento anexo à loja do sogro (o Manuel Tadéia); e a do Carlos Cavaco, que, depois de aprendida a profissão com o António Teixeira, se estabeleceu num cubículo logo a seguir ao portão de entrada para as traseiras do prédio do Américo Cachado e também sua propriedade.

Neste mesmo espaço entre a Igreja e a Casa do Povo houve também a barbearia do Francisco Braga, mas esta encerrou, julgo eu, antes de um dos outros, o Cavaquito ou o Diamantino Costa, se ter estabelecido. O Xico Braga fechou a barbearia para ir cumprir o serviço militar, em Lisboa, e por lá ficou depois, salvo erro como funcionário do Estado num serviço de fiscalização criado para combater a especulação resultante da escassez provocada pela Segunda Grande Guerra (escassez essa que levou ao abastecimento de alguns produtos essenciais, como o pão e o açúcar, por meio de senhas) e de que na altura era director o major Silva Pais. Pelas conversas do João Braga, o filho fora colocado como impedido do Silva Pais durante o cumprimento do serviço militar, o que teria vindo a valer-lhe a protecção do mesmo.

E, se muito me não estou a confundir, conheci ainda outra barbearia nesse mesmo espaço, pertencente ao Júlio Freire pai (Júlio da Silva Freire), que aí exercia a profissão. Se realmente não estou enganado, situava-se a mesma num compartimento que ficava à esquerda da habitação da família, ou seja, pegado ao edifício em que o António Mota Alegre habitava (no primeiro andar) e tinha o seu estabelecimento comercial e tratava do correio (no rés-do- chão).  Bem poderá dizer-se que no caso desta última barbearia, tudo não passa de uma suposição minha, mas, já agora, suposição por suposição, deixe-se-me ainda supor que o Júlio Freire filho (Júlio da Conceição Freire) aí terá chegado também a tratar do cabelo e da barba dos clientes, coisa que terá, naturalmente, aprendido a fazer com o pai.

O que não é suposição nenhuma é que um neto do primeiro Júlio Freire e sobrinho do segundo, o Júlio da Conceição Silva, foi realmente barbeiro, mas não exerceu a profissão no Pombalinho. Aprendeu a profissão em Almeirim, depois de ter saído de casa, e trabalhou depois numa barbearia de  Lisboa, antes de se ter empregado num serviço estatal, em Setúbal.

As duas barbearias da Rua de Santo António ficavam a menos de cinquenta metros uma da outra. Eram a do João Anacleto, situada mesmo em frente da Rua de Baixo (Rua 31 de Dezembro), e a do Veríssimo Duarte, pegada à mercearia do José Narciso (e mais tarde do Felesmino e da Júlia), no sentido de quem vai para a Rua Nova (Rua 5 de Outubro).

O João Anacleto, devido a uma doença que o deixou de cadeira de rodas deixou de exercer a profissão, mas não fechou a barbearia. Pôs por sua conta um jovem barbeiro de Riachos, o Carlos Patim (não sei se apelido, se alcunha, o “Patim”) e ele tomou conta, com o apoio da mulher (a Augusta Mota), do Posto dos Correios, instalado (depois desse serviço ter deixado de estar a cargo do Mota Alegre) ao lado da loja das Motas, como era conhecida.

O Veríssimo Duarte era ajudado, nos dias e horas de maior afluência de clientes (o sábado à noite e o Domingo), pelo irmão, o Francisco Duarte, mais conhecido por todos por Xico Pardal, que também havia aprendido o ofício, mas que acabou por assumir como sua profissão a de negociante de criação e de coelhos, de peles e de ovos, que comprava no Pombalinho e arredores e despachava para Lisboa,  por via férrea.

Falando do Xico Pardal, justo é realçar a sua grande classe como actor de índole humorística, largamente comprovada na sua larga participação em grupos teatrais do Pombalinho e da Azinhaga.
Quanto a alfaiates, eu ainda sou dum tempo em que não havia nenhum estabelecido no Pombalinho. Vinha um alfaiate de São Vicente do Paul, o Joaquim Alfaiate (nunca o conheci por outro nome) arranjar clientes ao Pombalinho e, pelos vistos, dava bem conta do recado. E havia para isso duas boa razões. Eram elas, por um lado, que os alfaiates, por aqueles tempos e naqueles meios, só faziam fatos para homens e, por outro, que a maior parte dos homens não mandava fazer mais que dois fatos durante a sua vida, o primeiro para estrear no dia da inspecção para o serviço militar (onde teria que despi-lo, assim como ao resto da roupa), e o segundo para estrear no dia do casamento.

Um fato completo era, e é, composto por três peças, calças, casaco e colete, mas o colete usava-se muito pouco, pelo que a maior parte o não mandava fazer. Sempre ficava mais barato. E, por falar em custos, não será despiciendo lembrar que, desses dois fatos apenas que a maior parte mandava fazer ao longo da vida, um deles, o da inspecção militar, para um ou outro com maiores dificuldades tinha de ficar-se por um fatinho de cotim.

A certa altura, porém, o Joaquim Alfaiate veio estabelecer-se no Pombalinho, onde, além de quatro aprendizes, incluindo um filho, o José, teve a trabalhar consigo um alfaiate que durante algum tempo esteve a habitar no Pombalinho, em casa do João Feliciano, de cuja esposa, salvo erro, era familiar. Era aleijado de uma mão, mas não ao ponto de que isso o impedisse de jogar futebol. Também o não impedia, de resto, de exercer a sua profissão.

Passados uns anos, e depois de ali ter falecido uma sua cunhada solteira (irmã da mulher) que habitava com a família e também trabalhava na alfaiataria, o Joaquim Alfaiate partiu novamente, não se livrando da fama de ter sido ele o causador da morte da cunhada, por meio de alguma remessa, nome que por aquelas paragens se dava a qualquer mistela dada a alguém com o fim de lhe acabar com os dias. Cá por mim, nunca acreditei que o homem tivesse feito isso.

Mas, então, já os seus aprendizes se haviam tornado mestres e se haviam estabelecido por conta própria. Casos do Manuel Braga, que ocupou o espaço que fora a barbearia do irmão, conforme já referido. E casos também dum João e de um Ângelo, que já vieram com o mestre de São Vicente do Paul e dos quais não sei se alguma vez conheci o apelido. Ambos acabaram por ficar no Pombalinho, onde se estabeleceram e se casaram. O João, como Joões há muitos, passou a ser conhecido por João Alfaiate, seguindo o ancestral costume de se dar a esses profissionais a profissão por apelido. O Ângelo, como não havia mais nenhum Ângelo no Pombalinho, não havia necessidade de chamar-lhe Ângelo Alfaiate (e parece que até não soa bem), para se saber de quem se falava. Estava identificado apenas pelo nome próprio. O que não quer dizer, naturalmente, que algumas vezes assim não tenha sido chamado.

O Joaquim Alfaiate, ao estabelecer-se no Pombalinho ocupou o compartimento do edifício do Joaquim Gonçalves Ferreira em que mais tarde o Diamantino Costa viria a instalar a sua barbearia, como já mencionado. O Joaquim Alfaiate mudara-se para uma casa que ficava na Rua de Santo António, em frente da Rua Joaquim Gonçalves Ferreira ou quase, ali tendo exercido a profissão e permanecido, julgo eu, até deixar o Pombalinho.

O João Alfaiate estabeleceu-se na casa pegada, pela parte de cima, à fonte da Rua de Baixo, muito próximo, portanto, do estabelecimento do Manuel Cavaco e da Domicília. O Ângelo estabeleceu-se no Outeiro, onde me parece que os seus pais habitavam. E, com a minha saída da aldeia natal, pouco mais sei quanto às andanças de um e do outro. Sei é que na barbearia do Carlos Cavaco e na alfaiataria do João Alfaiate, muito próximo da qual morava, passei muitos serões em bom convívio com os próprios e com malta da nossa geração. E também passei bons bocados na barbearia do António Teixeira, pois foi a que eu mais frequentei (era, aliás, seu cliente) antes da abertura dos estabelecimentos do Carlos Cavaco e do João Alfaiate.

Um facto a realçar, em relação às barbearias, era o seu contributo para uma actividade lúdica dos clientes. Com efeito, todas elas dispunham de jogo de damas e de jornais aos sábados e aos Domingos (“O Século” ou o “Diário de Notícias”), pois, como já aludi a propósito da ajuda do Xico Pardal ao irmão nos dias e horas de maior afluência de clientes, as barbearias estavam também abertas nesses dias, sendo o serão de sábado o maior de toda a semana. Se os barbeiros tinham um dia de folga, era à segunda-feira.
Também não faltavam então – mais exactamente entre 1939 e 1945 – por cima dos bancos das barbearias, as publicações sobre a Segunda Grande Guerra, que as Embaixadas dos Aliados faziam chegar a toda a parte.

Assim, foi na barbearia do António Teixeira que eu aprendi a jogar às damas, que foi um dos meus grandes entretenimentos durante muitos e muitos anos, e a fazer palavras cruzadas, que muito contribuíram (e já não contribuem porque não tenho hoje jornais que as publiquem) para o enriquecimento do meu vocabulário.
Naquele tempo, raríssimo era o camponês adulto que soubesse ler, e, por isso, algumas vezes li, em voz alta, também na barbearia do António Teixeira, para todos os presentes, as notícias do jornal que mais interesse despertavam.

Só para mim, não deixava de ler nunca eram ao apontamentos críticos publicados nesses jornais sobre os filmes estreados (em Lisboa, claro). Não tinha a mínima hipótese de ver esses filmes, ou quaisquer outros, mas não desperdiçava um só desses apontamentos, muito longe, naturalmente, de pensar que o cinema viria a ser uma actividade a que eu estaria bastante ligado, primeiro como cineclubista, depois como chefe do Sector de Documentação e Informação Cinematográfica do Instituto Nacional de Cinema, em Maputo, e como colaborador, durante pelo menos duas décadas, de todos os órgãos de comunicação social então existentes na mesma cidade, além de ter feito parte, por muito tempo, da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos (CECE), espectáculos esses que, diga-se, se resumiam aos filmes.

E, já agora, por falar em filmes, e por o facto, ocorrido nesses tempos da minha infância, não estar certamente despido de interesse, histórico até, seja-me permitido lembrar, a terminar este capítulo, que o primeiro filme que eu vi - e, como eu, com certeza a quase totalidade da população do Pombalinho – foi “Nada de Novo no Alcazar”, um documentário de propaganda franquista que durante a Guerra de Espanha (1936/1939) andou a dar a volta a Portugal, por iniciativa do Secretariado Nacional de Informação (SNI), e que foi exibido no adro da igreja.

Bons tempos?... Para quem os recorda... Ou não será que RECORDAR É VIVER?



sábado, 16 de maio de 2009

Intervir!


Tinha eu dezassete ou dezoito anos quando escrevi a primeira carta para um jornal. Fi-lo a convite de um velho pedreiro chamado Francisco Carvalho, que todos tratavam directamente por Mestre Carvalho e, indirectamente, por Carvalho Velho, para o distinguir do filho, António Carvalho, também pedreiro, que seria por, conseguinte, o Carvalho Novo.

Trabalhava eu então num forno de telha e de tijolo que só funcionava no verão, por falta de instalações apropriadas para funcionar no tempo chuvoso. Poderia designar-se por “fábrica de cerâmica”, mas era rudimentar de mais para isso. Tanto aquele como todos os outros que havia nas redondezas eram denominados muito simplesmente por fornos: Forno do Alviela, esse para onde eu fui sempre trabalhar dos catorze aos dezanove anos e mais ou menos de Abril ou Maio a Agosto ou Setembro, conforme o tempo o permitisse; Forno de Mato Miranda, etc.
Ora, quem a primeira vez me contratou para ir trabalhar para o forno foi precisamente o Mestre Carvalho, que era quem então o explorava, por aluguer pago em tijolos e telhas aos seus proprietários, os latifundiários Infantes da Câmara, de Vale de Figueira.

O Mestre Carvalho assinava "Os Ridículos" , um semanário humorístico editado em Lisboa que teve sempre a vida complicada pela censura salazarista, a qual acabou mesmo por pôr-lhe fim, não sei já se por medida censória definitiva ou se pelas dificuldades económicas criadas pelos sucessivos períodos de suspensão, sempre crescentes, que foram sendo aplicados ao jornal. Uma das secções de Os Ridículos era “Terra de Ninguém”, em que os correspondentes ou assinantes, em geral assinando com o seu gentílico, davam conta do que de pior ia pelas respectivas terras.

Pois bem, um dia o Mestre Carvalho teve a ideia de me propor que escrevesse um artigo para aquela seccção, sobre o Pombalinho. Eu não me fiz de rogado. E assim alinhavei as minhas primeiras palavras que saíram num jornal, escalpelizando o facto de o Pombalinho, aldeia com cerca de mil habitantes, não ter médico, não ter farmácia, não ter telefone nem electricidade, mas ter catorze tavernas. Uma verdadeira “Terra de Ninguém”, de facto. Assinava com o inevitável gentílico: Um Pombalinhense.

Por essa altura, pouco mais ou menos, tive conhecimento da existência da Gazeta do Sul, um semanário de que gostei e de que, por isso, me tornei assinante. Denominava-se de “semanário de cultura popular”, era editado no Montijo e dispunha de um espaço para colaboração dos assinantes. Também não estava muito nas graças do Estado Novo. Era, sem dúvida, um bom jornal, atingindo em pleno os objectivos que se propunha: a cultura popular. Semana a semana, eu lia-o com avidez.
Foi então que começou a morder-me o bichinho de ver o meu nome no jornal, já que aí não iria usar o gentílico, como autor de alguma coisa escrita por mim. Camponês assalariado num meio muito limitado, com a matéria do 2º Grau da Instrução Primária (4ª classe), que completara aos onze anos, já bastante esquecida, era-me difícil a escolha dum tema e a sua exposição, mas não me dei por vencido. Acabei por mandar dois artigos para o jornal, muito espaçados um do outro, que foram publicados.

Com a ida para a tropa (Serviço Militar Obrigatório) interrompi a assinatura da Gazeta do Sul. Reateia-a depois e mantive-a até estar em Moçambique há já cinco ou seis anos, ou seja, até á altura em que a Gazeta, com as lutas de libertação nacional desencadeadas nas então colónias de Portugal em África e com a proclamação de Salazar, para Angola e em força, assume abertamente uma posição colonialista, abjurando assim da sua anterior postura de oposição ao Estado Novo, coisa para mim inaceitável.

Não guardei esses meus primeiros escritos para jornais. Não tinha ainda o espírito de coleccionador, por um lado, e de arquivista, a minha autêntica vocação, creio eu, por outro, que mais tarde me cativaram. Por isso perdi também O Mosquito, precursor dos jornais de banda desenhada em Portugal e minha primeira assinatura de hebdomadários, tinha então catorze ou quinze anos. Hoje, O Mosquito, que deu lugar ao Mundo de Aventuras (ou foi ao Cavaleiro Andante?) e que eu assinei até á sua extinção, é uma relíquia para coleccionadores de publicações de BD. Nele travei conhecimento com o mágico Mandraque, o Capitão Cid e outros mais de que já não me lembro.


Disse acima que terá sido o bichinho a morder-me por ver o meu nome no jornal que me teria lançado na aventura de escrever para jornais. Será por aí certamente, que todos começam. Mas não será que subjacente a esse desejo existirá já também a vontade de intervir quanto mais não seja no evoluir dos acontecimentos à sua volta? Penso que sim. Sendo que esse objectivo será, naturalmente, mais ou menos atingido consoante a capacidade e a pertinácia do escrevente, assim como a guarida que os orgãos de informação lhe dêem ou deixem de dar.



quinta-feira, 13 de novembro de 2008

José Afonso... e o mais que por acréscimo virá!


O nome por que o meu pai era conhecido no Pombalinho era o de José Afonso. O seu nome, porém, era José dos Santos. Coisa que, de resto, acontecia então com muita gente: não ser conhecida pelo seu verdadeiro nome. A prática, no Pombalinho como em todo o lado, com certeza, era alguns miúdos irem ficando conhecidos pelos nomes que os vizinhos lhes davam, por forma a evitar-se que houvesse repetição de nomes e que fosse, assim, necessário estar com mais explicações para bem se compreender de quem é que se falava, quando se falava.
No caso do meu pai, que foi registado como José dos Santos, acontece que o pai dele, que eu não conheci, se chamava Afonso dos Santos, não havendo por ali então qualquer outro Afonso, nem de seu nome próprio nem de apelido. O mais natural, comparando com outros casos, e dado que Afonso era o nome próprio do meu avô, seria que ao meu pai chamassem José do Afonso. Mas não: era José Afonso. Também pode ser que tenham começado por chamar-lhe José do Afonso e que, depois, com o falecimento do meu avô e com a mudança do local de habitação, tenha havido uma alteração para José Afonso.

A propósito, contava o meu pai que, já depois de ter cumprido o serviço militar, passou um dia pelo Pombalinho um seu ex-colega da tropa com o qual se havia dado muito bem, ambos sabendo, cada um em relação ao outro, o verdadeiro nome e a terra em que vivia.  E tendo então esse ex-colega do meu pai aproveitado a oportunidade para, se possível, se encontrar com ele, pôs-se a perguntar pelo José dos Santos. Pois bem, ninguém a quem ele perguntou por esse nome foi capaz de perceber a quem é que ele se estava a referir. Já não me lembro se alguém chegou, por outras referências, a conseguir perceber que ele afinal estava a perguntar pelo meu pai, e se ele e o meu pai chegaram ou não a encontrar-se. Tenhamos em conta, no entanto, que o encontro não seria fácil, mesmo que o meu pai tivesse sido identificado, caso o seu ex-colega estivesse apenas de passagem e isso não tivesse acontecido num Domingo ou num dia Feriado. Com efeito, tratando-se de um dia de semana, o mais provável era que o meu pai se encontrasse no campo, cumprindo mais um dia de jorna, que, como se sabe, era de sol a sol.
Uma coisa, porém, há que ter em conta: para o meu pai contar isto é porque soube que aconteceu. E para saber que aconteceu, temos a considerar duas hipóteses: ou o ex-colega, por outras referências, tal como dizer que ambos haviam feito o serviço militar no Hospital Militar (Serviços de Saúde), mais conhecido pelo Hospital da Estrela, em Lisboa, acabara por conseguir que as pessoas com quem falou o tenham identificado; ou falando essas pessoas, depois, de um indivíduo que passou por ali e perguntou por um tal José dos Santos sem que ninguém tivesse percebido de quem se tratava, isso tivesse acabado por chegar aos ouvidos do meu pai.

As indicações acima referidas ocorrem-me pelo seguinte:
Tendo cumprido o serviço militar no Hospital da Estrela, o meu pai tornara-se uma espécie de auxiliar de enfermagem. Pelo menos a dar injecções aprendera ele. E fazia-o muito bem.
Ora, ao terminar o serviço militar e voltar à terra (o Pombalinho era como se fosse a terra do meu pai, se bem que ele tivesse nascido e crescido na Quinta da Melhorada, pertencente ao João d’Assumpção Coimbra e administrativamente integrada na vizinha freguesia da Azinhaga), acho que logo começou a dar injecções a quem elas fossem receitadas pelo Dr. Victor Semedo.

Como era a situação exactamente nessa altura (1922/1923 – o meu pai assistiu, no Terreiro do Paço, à chegada de Gago Coutinho e Sacadura Cabral no regresso da sua célebre viagem aérea ao Brasil), não sei, mas melhor do que era quando eu já tinha algum entendimento (a partir dos meus 7, 8 anos – 1936, 1937, portanto), não seria.

Eu nem sei se nas Farmácias se davam injecções, mas julgo que sim, pelo menos em localidades onde não houvesse outro serviço mais adequado a esse fim. Para o Pombalinho, porém, darem-se ou não se darem injecções nas farmácias era tudo o mesmo, porque, pelo menos desde a minha infância e até hoje, que eu saiba, só houve uma farmácia no Pombalinho durante dois ou três anos, aí por volta de 1935/36. Era a farmácia do Mendonça, que assim como apareceu e se instalou na Rua de Cima (Rua Barão de Almeirim), na casa para onde mais tarde foram morar os meus primos José da Silva e a esposa, a Lucília, e onde o Silva montou a sua oficina de latoeiro e de venda e reparação de bicicletas, assim desapareceu. E nunca mais ninguém viu uma farmácia no Pombalinho. Talvez por a Azinhaga ser muito perto e, que eu me lembre, sempre lá ter havido uma, cujo proprietário e Director Técnico (a mesma pessoa e cujo nome esqueci) era de lá natural, suponho.

Foi tão fugaz a passagem do Mendonça pelo Pombalinho, e eu era tão miúdo, que se não fosse o caso de ele ter um filho pouco mais velho do que eu, do filho ter uma bicicleta e de um dia termos ido, o dono da bicicleta e mais quatro miúdos, dar um grande passeio com ele, era até capaz de me ter esquecido completamente do Mendonça e da sua farmácia. Porque, além da localização da farmácia, esse passeio foi a única recordação que me ficou dos Mendonças. E acho que vale a pena contá-lo.

Foi um passeio até para lá da linha de caminho de ferro (Linha do Norte). Para lá da linha, que ficaria aí a cerca de um quilómetro do Pombalinho e tinha ali uma passagem de nível com guarda, era “o bairro”, zona de terrenos acidentados onde predominava a mata e abundavam os escorpiões, a caminho da Quinta do Benito (do Canavarro), de São Vicente do Paul e do Sobral. Íamos, portanto, cinco na bicicleta, e nunca eu tinha visto, nem voltei a ver, uma bicicleta transportar tanta gente. Eu e o meu irmão, vinte e sete meses mais velho que eu, éramos dois deles. Os outros, excepto o dono da bicicleta, já não tenho a certeza quem fossem. Mas sem dúvida que faziam parte do grupo de brincadeiras que por ali se formava naquele tempo e naquele espaço, habitualmente constituído pelo Manuel João Bugalho, o Aníbal Condeço (Aníbal “Rato”), o Ezequiel e o Manuel Mateiro, o António Justino (o “Canário”), o Joaquim Cachado, o Arsénio Teixeira e o António Maria (da Isaura). Mas lembro-me que, além do condutor, sentado no selim, os outros quatro se instalaram como segue: um (o mais leve), sentado no guarda-lamas da roda da frente e agarrado ao guiador; outro sentado no quadro (entre o guiador e o selim); o terceiro sentado no suporte colocado sobre a roda de trás; e o quarto sentado nos ombros deste e agarrado aos ombros do condutor.

Fomos ainda um grande bocado para lá da linha (300/400 metros). Quando resolvemos parar, para voltar para trás, chegou à malta a vontade de fazer as suas necessidades fisiológicas. E, então, vá de urinar, não tendo deixado de vir à baila, como sempre que tal acontecia, o dito: “mija um português, mijam dois ou três”. Mas houve um a quem também chegou a vontade de “dar de corpo” (quem é que se lembra desta expressão?). E esse foi precisamente o Mendonça, o qual, feito o servicinho, limpou o rabo nada mais nada menos que a uma nota de 20$00, a de menor valor então existente e aquilo que o pai de qualquer um dos outros precisaria, na altura, de trabalhar pelo menos três dias para os ganhar. O que foi feito da nota, depois, não me recordo, mas ficar lá, só porque tinha servido de papel higiénico, não ficou, de certeza.
Mas se farmácia ainda houve no Pombalinho, durante dois ou três anos (a do Mendonça), já o mesmo se não pode dizer em relação a um consultório médico, pois, que eu tenha tido conhecimento, nem um só médico alguma vez lá se estabeleceu. Até hoje!...

Desde que eu me lembro, essa falta era atenuada pela contratação de um médico pela Casa do Povo, que ia duas (ou três?) vezes por semana, salvo erro da parte da manhã, dar consulta aos sócios e familiares da dita Casa do Povo disso necessitados. Desde o início desse serviço e até ao fim da sua carreira, terminada já na Junta de Freguesia, na sequência das transformações produzidas pelo golpe de 25 de Abril de 1974, sempre esse médico foi o Dr. Victor Semedo, que vivia e tinha o seu consultório em Vale de Figueira (de onde, creio, era natural), uma aldeia a cerca de 6 quilómetros do Pombalinho, distância que, enquanto eu vivi no Pombalimho, ele sempre percorreu de bicicleta a pedais. Com o andar dos tempos terá, provavelmente, mudado alguma vez de meio de transporte.
Pessoa simples, afável, a História do Pombalinho não pode ser escrita sem que nela ocupe um lugar de muita honra o Dr. Victor Semedo. A Junta de Freguesia prestou-lhe a devida homenagem quando da sua retirada e, com o seu nome dado à sala onde funciona o consultório médico e a sua fotografia exposta na sala de entrada da Junta, mantém viva a sua memória.
Para casos de urgência fora das horas das consultas do Dr. Semedo, mais uma vez estava ali mais à mão o médico da Azinhaga. Casos de urgência raríssimos, aliás, porque só mesmo na última, ou seja, com alguém quase a morrer, é que ia chamar-se o médico. Assim não sendo, esperava-se pelo dia e hora das consultas do Dr. Semedo, que ia a casa dos doentes que não estivessem em condições de deslocar-se ao consultório.

Tinha eu 18 ou 19 anos quando, precisamente, tive de ir à Azinhaga, já de noite, chamar o Dr. Rasteiro para ir ver o meu pai, que estava de cama com uma febre altíssima e, se não me engano, com cólicas. Pedalando na minha bicicleta (bem pesada, diga-se) com quanta força tinha, lá cheguei a casa do Dr. Rasteiro, depois de ter perguntado onde é que ele morava ao primeiro azinhaguense que encontrei. Uma vez pronto, montou na sua bicicleta (nesse tempo os médicos, como se vê, não ganhavam para outro meio de transporte) e, com o andamento, pouco expedito, marcado por ele, lá chegámos junto do doente. Feita a consulta, o que o Dr. Rasteiro receitou ao meu pai foi gelo (não sei se receitou mais alguma coisa), produto que o mais próximo que se poderia obter era em Riachos, localidade que ficava a uns12 ou 13 quilómetros. Não havia que hesitar. Eu tinha que pôr-me a caminho de Riachos. E quis fazê-lo logo que a necessidade do gelo foi pronunciada pelo Dr. Rasteiro. Ele, porém, ao aperceber-se que eu estava para me pôr na alheta, pediu-me que o acompanhasse até à Azinhaga. Contrariado, tanto mais que já conhecia o andamento dele, achei não ter outra saída. E lá fomos os dois, lado a lado, pedalando brandamente até mesmo à porta da sua casa, onde lhe agradeci ter ido fazer a consulta e tomei outra velocidade até aos Riachos.

Descoberta, aí, a empresa distribuidora de peixe que fabricava o gelo, e dito ao que ia, fui ali muito bem atendido. Há muita coisa que esquece, ao fim de tanto tempo, e esta foi uma delas, mas a impressão que em mim perdura é que o gelo me foi oferecido pelos operários da fábrica.
Regressado ao Pombalinho, foi o gelo aplicado ao meu pai, segundo as indicações do Dr. Rasteiro, e passados dois ou três dias já ele andava outra vez no campo, de enxada ou de qualquer outra ferramenta nas mãos, porque dia perdido significava o défice familiar acrescido.
Estranho, para mim, é que Augusto de Souto Barreiros não se refira a este Dr. Rasteiro na sua obra “Azinhaga – Livro de Horas”, mesmo não sendo ele natural de lá, coisa que o seu sotaque dava perfeitamente para perceber. Nem mesmo ao referir-se aos dois filhos, que, esses sim, nasceram na Azinhaga e foram, segundo o Augusto Barreiros, igualmente médicos, tendo, por conseguinte, seguido ambos a profissão do pai, faz qualquer referência à sua paternidade.
E assim como não faz referência ao Dr. Rasteiro, também não se refere, pelo menos enquanto médico, ao Dr. Acácio, que foi quem, no exercício da medicina na Azinhaga, precedeu o Dr. Rasteiro. Eu conheci-o, já velhote, deslocando-se a visitar os doentes na sua caleche conduzida pelo Sr. Anselmo.

Dizia-se deste Dr. Acácio que ele não evitava minimamente, quando apoquentado por flatulência, expelir os seus gases ruidosamente, ou seja, peidava-se, estivesse onde estivesse. No Pombalinho dizia-se que isso tinha acontecido uma vez quando ele estava a consultar uma das filhas da D. Amélia Barreiros, por sinal minha vizinha e avó paterna do Augusto de Souto Barreiros. E acrescentava-se que a resposta dele a quem quer que alguma vez se mostrasse espantado perante tal comportamento, era que não ia deixar estragar uma caldeirada de tripas por causa de um dedal de vento.
Menciona o Augusto de Souto Barreiros, a certa altura da sua obra (pág. 44), um Dr. Acácio Borges Pereira da Silva, mas apenas por este ter sido provedor, durante dois mandatos, da Santa Casa da Misericórdia da Azinhaga. Fá-lo ao enunciar uma lista de provedores da mesma entre 1870 e a sua extinção, o que terá ocorrido por volta de 1950. Presumo que se trate do mesmo Dr. Acácio, nada me permitindo, todavia, dá-lo como certo.

Voltemos ao meu pai.
Segundo o seu Registo de Nascimento, o meu pai nasceu em 5 de Setembro de 1900, na Quinta da Melhorada, como já disse. Porém, o que sempre lhe ouvi dizer era que fazia anos a 6 de Setembro.
Filho mais velho de Afonso dos Santos e de Maria Cecília (conforme consta no Registo de Nascimento do meu pai) ou Maria da Conceição (como consta no meu), ambos nascidos na freguesia de Casével, também do Concelho de Santarém, creio que o meu pai, com a mãe e os irmãos, terão deixado a Melhorada devido ao falecimento do meu avô, pois deixavam, assim, de ter direito a casa, e se mudaram então para o Pombalinho.

A propósito de Casével, terra, por conseguinte, dos meus ascendentes paternos, alguma vez ouvi o meu pai dizer que ainda éramos parentes do General Humberto Delgado. Ora, Humberto Delgado é natural de Boquilobo, que é terra vizinha de Casével, embora se trate de povoações pertencentes a Concelhos diferentes: Casével ao Concelho de Santarém; Boquilobo ao Concelho de Torres Novas. Terá tal afirmação do meu pai algum fundamento?

Julgo que, ao sair da Melhorada, o meu pai ainda não tinha ido para a tropa, mas não deveria estar muito longe disso. A fotografia mais antiga que dele tenho foi tirada quando ele cumpria o serviço militar. É uma daquelas fotografias de estúdio, em pose. Uma fotografia colorida, coisa que, naquele tempo, só podia basear-se ainda, certamente, na invenção dos irmãos Lumière, em 1904, com a utilização de placas de vidro, pois que se passaram então mais de 30 anos até ao aparecimento da película colorida. 




Arrimado a um móvel florido e com mais flores, todas artificiais, suponho, por detrás, em vasos e jarras, o José Afonso, na sua farda de gala, a que não falta o distintivo dos Serviços de Saúde (uma braçadeira), em cabelo, de relógio de pulso e a agarrar um par de luvas, está um galã. O relógio de pulso deve ter sido emprestado por alguém; as luvas deviam fazer parte do uniforme.
Como qualquer um, o meu pai tinha os seus amigos predilectos, entre os quais se contavam o António da Clotilde, o António da Azinhaga, o Augusto Anastácio (ver os capítulos “Dá alguma coisa ao necessitado?” e “Um Gigante”) e o Francisco Mação.

O António da Clotilde (Clotilde era o nome da mãe), ou, mais coincidente com a forma como era realmente tratado, o Tóino da Cotildes, chamava-se de facto António Martins, mas também havia muito pouca gente que o soubesse. Ele e a esposa, a Maria Amália, foram os meus padrinhos de baptismo e do meu irmão, tendo os meus pais sido padrinhos, também de baptismo, e depois de casamento, creio que de todos os seus cinco filhos: José, Ermelinda, Edmundo, Rui e Georgina. E foram igualmente padrinhos de baptismo das duas filhas, a Carolina e a Rosalina, do Augusto Anastácio.

O António da Azinhaga era assim conhecido no Pombalinho por ser da Azinhaga e, certamente, deslocar-se bastante ao Pombalinho e ali ter arranjado amigos, num tempo em que isso não era muito vulgar. É o que eu penso, agora, ao reflectir sobre isso, porque Antónios, na Azinhaga, não haviam de faltar, como não faltavam nem faltam em qualquer outro canto de Portugal onde haja duas ou três centenas de homens. O seu nome era António dos Santos, não tendo, contudo, apesar do apelido de ambos ser o mesmo, qualquer grau de parentesco com o meu pai.
Aliás, o António da Azinhaga (vou continuar a chamar-lhe assim) era casado com uma mulher do Pombalinho. Para que tal casamento tenha tido lugar, será de presumir que o casal tenha deparado com algumas más vontades ao princípio do namoro. Isto, porque as relações entre os da Azinhaga e os do Pombalinho nem sempre haviam sido de cordialidade. Ouvi algumas vezes o meu pai, e não só, contar que durante a infância dele dava briga certa os de um ou de outro lado serem apanhados pela parte contrária depois de passada a “oliveira grossa”, oliveira esta que ficava à beira da estrada que liga as duas freguesias, do lado esquerdo no sentido Pombalinho/Azinhaga, sensivelmente a meio do caminho, e que, por se distinguir das outras em relação à sua grossura (daí o epíteto, naturalmente) ali serviu sempre como ponto de referência não só para a então livre deambulação de pombalinhenses e azinhaguenses, como para qualquer outra casual circunstância. E só por isso devia ter sido poupada à razia dada às oliveiras na região.

No meu tempo de jovem tais hostilidades já haviam desaparecido, se de facto alguma vez existiram. Não é de pôr-se de parte que houvesse algum exagero nessa afirmação. Mas a resistência a que rapazes da Azinhaga viessem namorar raparigas ao Pombalinho, essa perdurava. Se o mesmo acontecia no caso inverso, não sei. O que sei é que para os apaixonados não há barreiras intransponíveis. E, por conseguinte, casamentos entre pombalinhenses e azinhagueiros não faltavam. Talvez porque nesta coisa de namoros e casamentos o que mais do que tudo sempre contou muito foi ser-se ou não de “boas famílias”. E não deixa de contar ainda, se bem que, graças a uma muito maior independência económica e concomitante escape a uma subordinação paternal de que uma grande parte dos jovens hoje goza, não tanto. 

Como teria sido no caso do António da Azinhaga e da mulher: um amor que se sobrepôs a todas as contrariedades e resistências, ou um amor facilitado pelo aval das “boas famílias”? O nome dela, que tantas vezes pronunciei, é um dos tantos que, com muita pena minha, já se me esvaiu da memória. Lembro-me, no entanto, que era irmã de um Marcelino casado com a Júlia Cavaco, filha do Manuel Cavaco, da Estalagem do Pocinho. Continuo a falar do António da Azinhaga, porque, a meu ver, era uma personalidade muito interessante. Teve a infância, a adolescência e a entrada na idade adulta comuns aos camponeses - vida de pobretana, por conseguinte -, o que me permito afirmar por ele e o meu pai terem sido companheiros e amigos já por esses tempos. Mas depois tornou-se negociante e eu conheci-o já a residir no Entroncamento, com a família (a mulher e três filhos, uma rapariga e dois rapazes) e com um hóspede (um jovem barbeiro da Azinhaga a trabalhar no Entroncamento, que acabou casando com a filha).

O António da Azinhaga tinha uma grande horta lá no Entroncamento, perto de casa. E o meu pai ia passar grandes temporadas a tratar dessa horta, recebendo pelo trabalho o salário combinado e habitando com eles, o que quer dizer com comida e dormida, como se de mais um familiar se tratasse.
Fora isso, o meu pai decidia, uma vez por outra, ir até ao Entroncamento, para visitar os amigos. O dia escolhido tinha de ser, logicamente, um Domingo ou um Feriado em que não houvesse trabalho para fazer nas searas ou nas eiras. E como havia uma feira mensal no Entroncamento, em determinado Domingo do mês (o último, salvo erro), o dia escolhido era normalmente um desses Domingos de feira. O percurso, de cerca de 17 quilómetros, por estrada e por atalhos, era feito a pé, para um lado e para o outro. Naquele tempo, o Pombalinho não era ainda servido por nenhum serviço de transporte colectivo. Mesmo que fosse, o percurso não deixaria por isso de ser feito a pé, certamente. Porque, havendo ligação ferroviária de Mato Miranda, a cerca de quilómetro e meio do Pombalinho, ao Entroncamento, local da principal oficina ferroviária do país, a viagem continuava sendo feita a pé. Julgo, porém, que a causa talvez nem sempre fosse a pobreza reinante. Talvez fosse também (em relação ao comboio, claro) uma questão de horários.

Algumas vezes eu fiz essa jornada com o meu pai. Outras vezes com o meu pai e com o meu irmão. Partíamos de madrugada. Chegávamos à Golegã já com o dia a romper e as tascas a abrir, numa das quais emborcávamos o nosso cálice de aguardente. Continuávamos a caminhada por estrada até um bocado para lá do cemitério da Golegã e enveredávamos então por atalhos até ao Entroncamento, onde nunca chegávamos sem que muito antes sentíssemos uma necessidade premente de despejar o conteúdo clarinho e fumegante da bexiga, efeito evidente da aguardente.

Falando do cemitério da Golegã, não pode deixar de citar-se a singular quadra que o mesmo ostenta à entrada:

Ó tu mortal que me vês
Repara bem como estou
Eu já fui como tu és

E tu serás como sou

Chegados ao Entroncamento, logo nos encaminhávamos para casa do António da Azinhaga, onde chegávamos ainda bastante cedo e éramos recebidos com evidente satisfação. Então, além dos momentos que passávamos confraternizando com aqueles amigos e que geralmente incluía uma visita à horta, íamos à feira e passeávamos pela vila, sempre com uma ou duas passagens pela ponte que, para encurtar caminho entre dois lados da vila, que nasceu e cresceu à volta das instalações ferroviárias, passava por cima das oficinas e das linhas, onde nunca faltavam comboios em movimento, com as máquinas expelindo o seu denso fumo negro, pois não havia ainda nenhuma linha de caminho de ferro electrificada.

Curioso é que o meu pai procurava sempre que apanhássemos com o fumo na cara e o aspirássemos, porque, dizia ele, fazia bem aos pulmões. Ora, como há muito se sabe, nada mais ao contrário, podendo até a inalação de fumo levar à morte, por intoxicação.
Mais curioso ainda é, no entanto, que ao estar eu a escrever isto, em princípio de Novembro de 2005, deparo, na “Visão” de 25 de Agosto do mesmo ano, com um artigo com os seguintes título e subtítulo:

Monóxido de carbono que trata
Miguel Soares chegou a uma conclusão impensável: o gás tóxico dos tubos de escape dos carros pode combater o entupimento das artérias

E vale com certeza a pena transcrever a parte inicial do artigo, até para sabermos que este Miguel Soares não é um qualquer. Ei-la:

Por mais estranho que pareça, esclerose múltipla, malária, rejeição em transplantes e arterosclerose têm um factor em comum: a resposta inflamatória, ou seja, a forma como o corpo reage a um microorganismo ou a uma lesão de um tecido. «Tem-se a ideia de que é uma coisa má, mas é essencial à vida», explica o investigador Miguel Soares. A arterosclerose pode ser vista como um processo inflamatório que acontece nas paredes dos vasos sanguíneos, à conta da acumulação de gordura. Num artigo publicado na revista Nature, enquanto ainda trabalhava na Escola Médica de Harvard, em Boston, Miguel Soares demonstrou que o monóxido de carbono (sim, o gás tóxico libertado pelos tubos de escape dos carros) é capaz de reverter os efeitos da doença. «Neste momento, há nove patentes referentes aos direitos de exploração do monóxido de carbono como substância terapêutica. Ora bem, não sei se estarei enganado, mas julgo que o fumo libertado pelas máquinas movidas a carvão contém igualmente monóxido de carbono. E, assim sendo, será caso para dizer que, afinal, o meu pai já tinha descoberto as funções terapêuticas do monóxido de carbono nos longínquos anos da década de 40 do Século XX... Ah grande Zé Afonso!!!...

Foi nas andanças com o meu pai pelo Entroncamento que a primeira vez ouvi falar de relações sexuais entre dois irmãos. Numa relação incestuosa, portanto. Note-se, contudo, que na altura esse era um termo fora do nosso vocabulário. E para o meu pai me contar e eu entender o que se passava, nem foi necessário. Tratava-se de um casal já com uma filha e estabelecido com mercearia e vinhos, se a memória me não falha, não muito longe da residência do António da Azinhaga. Interessante é que, para os tão arreigados preconceitos da época, sobretudo para os relacionados com a sexualidade (haverá grande diferença entre o que era e o que é?), o casal e a filha viviam sem sobressaltos provocados por hipotéticos puritanos ofendidos com a sua relação fora dos cânones éticos e religiosos.

O António da Azinhaga tornara-se então negociante, como já foi referido. Foi, de resto, em sua casa que eu pela primeira vez vi um telefone e uma máquina de escrever, instrumentos sem dúvida necessários, se não mesmo indispensáveis, ao seu modo de vida. Não sei em que é que ele negociava, exactamente. Possivelmente em tudo que se lhe deparasse que desse para comprar e vender com lucro, especialmente se lho vendessem fiado. De dois negócios feitos por ele lembro-me eu, um de ouvir contar, o outro de o ter conhecido directamente. O de “ouvir contar” tratou-se de uma compra a crédito, ao João d’Assumpção Coimbra. O que se contava era que a certa altura o Coimbra, comentando com alguém uma venda de azeite feita ao António da Azinhaga, azeite esse de que nunca mais recebera o respectivo valor, dizia: -Ah... ele não mo pagou, mas eu vendi-lho bem vendido! Por outras coisas que se contavam do Coimbra, não será muito de estranhar que também tenha acontecido essa.
O negócio que eu lhe conheci directamente foi a compra da azeitona, ainda na árvore mas pronta a varejar, de um olival pegado à horta do Romeu, logo a seguir ao Casal Centeio. E o conhecimento directo veio-me do facto de eu próprio (então com 14 ou 15 anos ou por aí perto), o meu pai e o meu irmão termos andado, juntamente com um rancho de gaibéus, na colheita dessa azeitona, coisa que deve ter durado para aí duas ou três semanas.

Pode não ter nada a ver, mas quando reflicto sobre isso penso que foi daí, do convívio com esses gaibéus, que mais comecei a dar conta das diferenças nos usos e nos costumes de umas terras para outras. E a diferença, neste caso, era que enquanto certos termos de calão que no Pombalinho não podiam ser ditos por homens em frente de mulheres sem que tal fosse tomado por ofensa grave, entre os componentes daquele rancho, parte dos quais familiares muito próximos entre si (pais com seus filhos e filhas ainda solteiros), valia tudo, sem o mínimo constrangimento.

No Pombalinho, até “porra” era obscenidade grossa e, por isso, me valeu uma vez uma valente bofetada da minha mãe. Estávamos no inverno e em casa, num dia à noite. Eu ia a subir para a lareira, para me aquecer, como era hábito nas casas dos pobres. Ao subir, porém, descuidei-me e dei uma cabeçada na trave em que assentava a parede da chaminé. E aí vai “porra!”, exprimindo, em voz alta e bom som, o meu sentimento de dor. Ora, a minha mãe estava mesmo ali, e não gostou.

Além da visita à feira, o meu pai não deixava nunca de visitar o Jardim da vila, com cujo jardineiro acabou por familiarizar-se. Ficavam sempre os dois a conversar sobre flores um bom bocado e o meu pai só de lá saía sem alguma flor (pé transplantável, bolbo, sementes, etc.) para o seu jardim se a visita calhasse numa altura em que não houvesse mesmo nada que para tal se prestasse.
O mesmo acontecia, aliás, nas suas idas a Santarém por ocasião da feira anual que ali se realizava, já não sei se em Setembro se em Outubro, algumas das quais fizemos também juntos, ele, eu e o meu irmão, e igualmente a pé, pelo menos para lá. No regresso, creio que uma vez ou outra fizemos a viagem de comboio. Nunca ficava por fazer uma visita ao jardim das Portas de Sol e uma conversa do meu pai com o respectivo jardineiro. A não ser que ele lá não estivesse na altura. Mas se estivesse, o mais certo era o meu pai não sair das Portas do Sol também sem alguma coisa para o seu jardim. Como já referi ao falar dos quintais, as flores eram sem dúvida o grande hobby do meu pai.

Nos quintais das casas em que morámos não ficava um bocadinho que pudesse ser aproveitado para isso em que o meu pai não plantasse flores ou não colocasse vasos, tanto num caso como no outro cultivando espécies das mais variadas. Vasos, havia-os pelo chão e em armações de madeira com várias prateleiras, tudo por ele preparado em função do espaço. Até uma flor aérea o meu pai teve. Os seus ramos eram muito parecidos com os de um craveiro e estava colocada num bocado de rede metálica, com as raízes expostas ao ar. Precisava era de ser regada. Nunca vi outra em mais parte nenhuma.

Virá a propósito dizer que morámos em 5 casas. As duas primeiras, na Rua Carolina Infante da Câmara, eram do Manuel Mateiro e depois dos filhos: a Justa, a Verónica, a Francisca (Xica) e o Pedro.  A primeira, pegada à habitação dos donos e com um quintal comum, foi para onde os meus pais foram morar quando se casaram e onde nascemos o meu irmão e eu. A segunda era pegada à primeira, mas fazia parte de um outro corpo arquitectónico. A mudança efectuou-se por conveniência dos proprietários, mas mais tarde voltámos à procedência. E ali ficámos até que os donos precisaram da casa. Tudo processado em boa harmonia (era impossível não se processar tudo em boa harmonia com aquela família), tivemos então de sair dali, tinha eu 16 ou 17 anos. Como havia uma certa urgência por parte dos proprietários e não era fácil encontrar casa para arrendar naquela altura, fomos para a primeira que apareceu, no Pátio do Neto e propriedade do António Abegão. Porém, por a casa ser pequena e nem quintal ter, ficámos ali pouco tempo, tendo então mudado para uma casa do Manuel Sacola, na Rua 1.º de Dezembro (Rua de Baixo), onde ficámos até eu ir para a tropa. E estava eu ainda na tropa quando os meus pais se mudaram para uma casa do meus tios Manuel Afonso (Manuel dos Santos) e Maria Calada, na Rua de Santo António.

Na primeira habitação, todo o quintal comum, que tinha um poço, um tanque para lavagem de roupa, uma pereira e, salvo erro, uma parreira, era ajardinado pelo meu pai. Contíguo ao quintal, havia um forno e espaço para os galináceos, para os coelhos e para uma cabra, espaço esse que, embora protegido da bicharada daninha (ginetos e toirões) por rede metálica, não se livrou de, duas ou três vezes, que me lembre, ter sido invadido por essa bicharada, que sempre deixava estragos.
O corpo de que a segunda habitação fazia parte ligava-se - pela frente e por uma dupla varanda sem resguardo (uma vez desmandei-me dela abaixo, mas a amachucadela não foi grande) e com degraus a meio, para acesso aos dois lados - a uma construção igual, pelo exterior (eram, digamos, casas geminadas), mas que, no interior, não tinha qualquer divisão e servia de celeiro. E foi nesse celeiro, precisamente, que assisti pela primeira vez, era ainda bastante miúdo, a ensaios de um rancho folclórico, cujo ensaiador era o meu pai.

Não sei se já andaria na escola, para a qual entrei em 7 de Outubro de 1937 (7 de Outubro era a data, naquele tempo, da abertura do ano lectivo). Tendo eu nascido em 10 de Novembro de 1929, faltavam-me, então, apenas um mês e 3 dias para fazer os 8 anos. E não entrara no ano anterior porque, nesse tempo, a entrada para a escola só era autorizada com os 7 anos já feitos. Apesar de no ano anterior o meu pai ter antes falado com a professora, que era a Maria José de Moura Amorim, no sentido de ela me deixar entrar, visto faltar tão pouco tempo para eu fazer os 7 anos, e de ela lhe ter dado uma negativa, o meu pai mesmo assim me mandara para a escola, de bolsa às costas, a ver se pegava. Mas a professora não foi na cantiga. Mal me topou, perguntou-me o que é que estava ali a fazer. Eu nem sei se lhe respondi alguma coisa, se não; o que sei é que ela me mandou embora.

Pelas traseiras dessas casas geminadas e do largo portão de ferro que às mesmas se seguia e dava aceso às traseiras, situavam-se o curral dos bois (o Manuel Mateiro tinha uma junta de bois), o palheiro, uma pequena moradia, também alugada (habitavam nela o José Chicharro, com a mulher, a senhora Angélica, e um filho, também José e também Chicharro), e grandes espaços, em parte aproveitados para estrumeira e para as pocilgas dos porcos dos inquilinos.

Havia ainda um bocado de terreno, lá para trás do curral e do palheiro, que era cultivado pelo meu pai. Dadas as suas diminutas dimensões, nem será muito apropriado chamar-lhe horta. Plantavam-se ali umas couves, uns tomateiros, uns feijões verdes, tudo em pequena quantidade. Mas foi ali também, talvez devido ao secretismo de que devem revestir-se as experiências científicas, que o meu pai, enxertando hastes de craveiro em pés de couve, andou a ensaiar a criação de craveiros que dessem cravos verdes. Não resultou, mas, pronto... de falta de espírito científico é que não poderão acusá-lo...

A terceira habitação, a do Pátio do Neto, era, como já referi, muito pequena e nem espaço próprio tinha onde o meu pai pudesse dedicar-se ao seu tão apaixonado cultivo de flores. Por isso, como também já referi, lá ficámos muito pouco tempo. Já a quarta, na Rua de Baixo, além de ter as dimensões mais comuns nas casas de duas divisões apenas (cozinha e casa de fora), tinha nas suas traseiras um poço e espaço para horta e para o meu pai se dedicar à vontade às suas flores. E também tinha forno, logo à saída da cozinha. Não sei por que é que os meus pais se mudaram dessa casa, pois me encontrava então a cumprir o serviço militar, mas suponho que terá sido também por os donos, o Manuel Sacola e a mulher, a senhora Luísa, terem necessitado dela.


E dali se mudaram, então, para a Rua de Santo António, para uma casa dos meus tios Manuel Afonso e Maria Calada, casa esta com quatro divisões, pois dispunha de dois pequenos quartos, um anexo à cozinha e outro à casa de fora, este com uma janela para a rua. O espaço ocupado por toda a habitação não era, porém, muito diferente do comum, o que significa que o espaço dos quartos fora “roubado” à cozinha e à casa de fora. O facto de dispor dos dois quartos não deixava, contudo, de a tornar uma habitação melhorada.



Casa da Rua de Santo António, com a minha mãe à porta e com a frontaria engalanada para a passagem de uma procissão.



Também aqui havia um poço, logo à saída da cozinha, e um grande quintal com uma saída para a Rua 1.º de Dezembro. Não faltava, assim, terra para horta e para jardim. Na horta, lembro-me eu de o meu pai ter experimentado plantar batata doce, e também me lembro que o resultado foi negativo. E foi aí que os meus pais moraram até aos princípios de 1978, quando uma grande cheia deitou a casa a baixo, deixando-a inabitável, o mesmo tendo acontecido a mais três ou quatro.

Eu tinha estado no Pombalinho, de férias, em Setembro e Outubro de 1977. Havia então comprado um álbum em que colocara todas as fotografias que os meus pais tinham a granel pelas gavetas, algumas delas de grande interesse documental, especialmente em relação aos trajes, como, por exemplo, o uso da jaqueta, então já em desuso. Para além, naturalmente, do valor estimativo de todas elas.

A inundação da Rua de Santo António dera-se repentinamente e durante a noite, creio eu, com a água vinda em força do lado do campo da Golegã, depois de galgado o Dique dos Vinte. Não houve, assim, tempo para se salvar sequer o que mais se desejasse salvar. E lá se foi também o álbum ao molho, durante horas e horas, nada ou muito pouco dele se tendo podido aproveitar. E não havendo, então, no Pombalinho, casas para arrendar, foram os meus pais viver com o meu irmão e a minha cunhada, no Laranjeiro.

Sei, por uma sua certidão de nascimento, que os meus pais casaram no Reguengo do Alviela, freguesia de São Vicente do Paul, de onde a minha mãe era natural, em 14 de Maio de 1927. E sei que o meu irmão nasceu em 28 de Julho do mesmo ano. Por onde se vê que, caso o meu irmão não tenha tido um nascimento prematuro (os nascimentos aos 7 meses de gestação não eram invulgares), a minha mãe já ia grávida de 7 meses quando do casamento. Nascida a 10 de Junho de 1903, tinha então 24 anos. E o meu pai quase 27. Passando portanto um poucochinho já a média das idades com que as pessoas do seu escalão social e por aqueles lados casavam naquele tempo. E há que ter em conta que uma gravidez, ou mesmo o conhecimento de que os namorados teriam muito simplesmente chegado a vias de facto no que diz respeito a relações sexuais (casos raros, no Pombalinho e no Reguengo), eram factores que apressavam o casamento. Normalmente, isso constituía, de resto, um transtorno para os pais dos noivos, a maioria dos quais muito pobres, porque a criação das condições para a boda requeria o seu tempo de preparação, motivo pelo qual os casamentos eram sempre marcados com alguns meses de antecedência, os meses necessários para, pelo menos, se criar um carneiro. Só para o casamento de filhos de pais extremamente pobres ou em período de dificuldades acrescidas não haveria a matança de um carneiro, por parte de cada família, para a boda. De qualquer maneira, quase ninguém dispunha de meios para comprar um carneiro na altura em que precisasse dele. O recurso era comprar um cordeiro e criá-lo. E era o que se fazia.
Os meus pais casaram então em 14 de Maio de 1927. Nesse mesmo ano, em 28 de Julho, nasceu o meu irmão, a que foi dado o nome completo de António Afonso dos Santos, e em 10 de Novembro de 1929 nasci eu, Guilherme Afonso dos Santos. O que quer dizer que o meu pai tinha 29 anos quando eu nasci, e a minha mãe 26.

Como já vimos, o meu pai regressou então da tropa a saber dar injecções. E com certeza a saber tratar de feridas, também. Mas isso, normalmente cada um tratava das suas. E até lá para 1944 ou 1945 não houve mais ninguém no Pombalinho que soubesse dar injecções. Foi até o Abel Júlio (pedreiro, e mais tarde meu cunhado) e o Veríssimo Duarte (barbeiro) terem igualmente regressado do serviço militar a sabê-las dar. Mas nem por isso o meu pai deixou alguma vez de ter os seus “clientes”. Quanto mais não fosse, por uma razão muito simples: o meu pai nunca cobrou nada a ninguém pelas injecções que dava, ao passo que o Veríssimo cobrava qualquer coisa. O Abel, não me recordo se cobrava alguma coisa.

De facto, o meu pai nunca levou nada a ninguém pelas injecções que deu. E muitas vezes isso exigia-lhe grande abnegação. As injecções eram às meias dúzias e às dúzias e tinham, geralmente, que ser dadas em dias seguidos. Ora, o meu pai trabalhava de sol a sol, de segunda-feira a sábado. As injecções, portanto, excepto ao Domingo, tinha que dá-las depois de, ao sol-posto, largar o trabalho. Fosse qual fosse a estação do ano, e no Verão os dias em Portugal chegam a ter, de sol a sol, 15 horas. Se o doente podia andar, vinha ele a minha casa, dando o meu pai aí a injecção, depois de ferver a seringa e a agulha na caixinha metálica que tinha própria para isso e de passar um bocado de algodão embebido em álcool na parte do braço ou da nádega onde ia espetar a agulha. Se o doente estava acamado, tinha o meu pai que ir, com o seu estojo, a casa dele. Quando o doente residia na aldeia, o esforço exigido ao meu pai não era grande, visto tratar-se de uma povoação de casario aglomerado. Embora fosse raro, acontecia, porém, uma vez por outra, o doente morar pelos arredores. Caso dos pescadores, por exemplo, na margem do Tejo, do lado do Pombalinho (margem direita), nada menos do que a cerca de dois quilómetros de distância. E de um pescador me lembro eu a quem o meu pai andou a dar injecções deslocando-se a casa dele, à borda do Tejo: o António Lobo. Uma vez, pelo menos, teria eu 7 ou 8 anos, acompanhei o meu pai a casa do pescador. Passado algum tempo, ia eu a sair de casa para a brincadeira, vejo o António Lobo a chegar com um grande peixe. Perguntou-me, não sei se pelo meu pai se pela minha mãe. Voltei atrás, para ir chamar quem quer que estava em casa, e fiquei depois a assistir à oferta daquele peixe enorme como agradecimento por o meu pai lhe ter andado a dar as injecções.

Com efeito, o meu pai nunca cobrou nada a ninguém pelas injecções que deu. Acontece, porém, que as pessoas, e os pobres talvez mais que os outros, gostam de manifestar o seu reconhecimento a quem lhes faz algum bem, sobretudo se desinteressadamente. Daí que, passado mais ou menos tempo sobre cada dose de injecções terminada, o próprio “injectado” ou alguém da família viesse bater à porta da minha casa com qualquer coisa nas mãos (um frango ou uma galinha, um coelho ou uma dúzia de ovos...), como forma de agradecimento.

Além disso, e ainda pelo mesmo motivo, não faltava nunca, ao Domingo, na “Praça” (ver capítulo com este titulo), quem quisesse pagar um copo ao José Afonso.




A Praça, em 1964, já os trabalhadores rurais eram poucos.




Não sei se por isso se por outra coisa, a verdade é que, a partir de certa altura, aos Domingos, depois da “Praça”, o meu pai começou a chegar a casa quase sempre com um grão na asa. Porém, muitas vezes se seguia a semana toda sem sequer molhar o bico. Ia para casa ao regressar do trabalho e não saía mais, a não ser para ir dar alguma injecção, após o que também regressava logo a casa.
Mas houve um Domingo em que quem tinha um grão na asa era eu. Um Domingo à tarde em que estava sozinho em casa, tinha 18/19 anos, e em que chegou uma senhora a quem o meu pai andava a dar injecções. E o que havia então de se me ter metido na cabeça? Dar eu a injecção à senhora, nem mais nem menos. Disse-lhe então que o meu pai não estava, mas que eu também sabia dar injecções, pelo que podia dar-lhe eu a sua injecção.
E não é que a senhora aceitou?!... Pois bem, foi só pôr-me a fazer o que tantas vezes vira o meu pai fazer: pegar na caixinha metálica, enchê-la de água, meter nela a seringa e a agulha e pôr tudo ao lume. E a seguir fiz o resto: ensopei um bocado de algodão em álcool, esfreguei-lho no braço, onde era dada a injecção, preparei a seringa com o líquido da ampola... enfim, tudo como devia ser. E assim dei, na perfeição, a minha primeira e única injecção. O que o meu pai disse depois, não faço já a mínima ideia.

Conhecido na aldeia também como jardineiro emérito, muitas vezes os patrões para quem o meu pai andasse a trabalhar o mandavam tratar dos seus jardins. E também tratava do jardim dum senhora que vivia no Pombalinho, sozinha, numa casa logo à entrada da Rua Hilário José Barreiros, do lado esquerdo. Aliás, nessa rua só havia casas de habitação do lado direito. Residia aí, a senhora, mas o seu jardim ficava nas traseiras dum edifício então desabitado existente na Rua Barão de Almeirim, entre a habitação do Manuel Cardoso, que tinha um talho, e a propriedade, com duas moradias, do Domingos Ferrador. A habitação e o talho do Cardoso vieram a constituir o espaço ocupado pelo Café do Francisco Minderico e o referido edifício a sua habitação e da família.
Não sei qual era o nome da senhora. E creio que nunca o soube. Era referida por todos como “a Barbuda”, não lhe tendo conhecido nunca qualquer familiar. Quando do seu falecimento, não faço ideia nenhuma de quem lhe terá tratado do funeral. A Junta de Freguesia? Alguém a quem tivesse deixado os seus bens na condição de se incumbir disso?
Creio é que a casa ficou acessível a quem quisesse entrar, pois me lembro de ter estado também junto do seu cadáver. Disso... e de ter aproveitado a ocasião para surripiar um livro duma arca. Foi com certeza um dos primeiros romances que li, se não o primeiro, e que conservo na minha biblioteca. Reli-o muitíssimos anos mais tarde e achei-o um magnífico romance policial. Trata-se de “A Queda de César”, de John R. Carling, em 2.ª edição (de 1926) da Parceria António Maria Pereira e com tradução de Câmara Lima.

Digo que não sei se esse terá ou não sido o primeiro romance que li, porque, logo que eu e o meu irmão aprendemos a ler, nas noites de Inverno líamos à lareira, revezando-nos com o meu pai, romances que, se me não engano, o meu pai levava, pelo menos em parte, da Casa do Povo, na sua qualidade de Secretário da Direcção, cargo que desempenhou durante alguns anos.

Vem a propósito dizer agora que o meu pai lia com bastante desenvoltura letra impressa, mas não sabia escrever nem ler letra manuscrita. De escrita, fazia apenas o seu nome, o que lhe dava para assinar documentos, como o cartão de Secretário da Direcção da Casa do Povo, que me lembro de ter visto, e o Bilhete de Identidade, que a seguir reproduzo.






Isso se deveu ao gosto de ensinar do Júlio da Silva Freire, com certeza uma das mais ilustres figuras que o Pombalinho já teve, e ao facto de ter aprendido já a atingir a idade adulta. Eu ainda o conheci o Júlio da Silva Freire. E lembro-me bem de dois episódios da sua vida.
Segundo o meu pai contava, fez parte de um grupo de camponeses a que o Júlio Freire, nome abreviado pelo qual era mais conhecido, andou a dar aulas, à noite, gratuitamente. Penso que isso terá ocorrido apenas durante as noites maiores, já que durante as noites mais pequenas os camponeses, trabalhando de sol-a-sol, chegavam a casa exaustos e com pouco tempo para recuperar forças para um novo dia de trabalho, o que muito provavelmente os teria levado a dar as aulas por terminadas. Foi, de resto, o que aconteceu comigo numa altura em que pensei aprender música e a tocar um instrumento musical. Tinha então 18 anos.

O Augusto Diniz, que era do Pombalinho e tocava saxofone na banda da Azinhaga e em bailes, prontificou-se a ensinar-me a solfejar. Ainda me deu algumas lições, em sua casa, e ainda fui uma vez ou duas aos ensaios da banda, na Azinhaga. Mas aconteceu isso: chegaram os dias grandes e as noites pequenas, dias em que, muitas vezes, ao chegar a casa depois do dia de trabalho, me atirava para a cama e ficaria a dormir até à hora de levantar no dia seguinte se a minha mãe não me acordasse para cear. Acabei por desistir da música, embora tivesse bicicleta (fui, diga-se de passagem, o primeiro trabalhador rural a ter bicicleta, no Pombalinho) e se me tornasse mais fácil, por isso, deslocar-me à Azinhaga para os ensaios. Chego, todavia, a pensar que a minha desistência se terá devido mais à minha falta de entusiasmo pela aprendizagem da música, em que o instrumento da minha preferência era o clarinete, do que a qualquer outra coisa.
Pelo que ouvia ao meu pai, tive conhecimento de que houve um tempo em que ele se juntava, nos serões de inverno, com outras pessoas, em casa de uma delas, a ler romances, em livro e publicados nos jornais em folhetim (em “O Século”, por exemplo, então um diário afecto ao Estado Novo), que iam arranjando por empréstimo.
Uma das casas em que me lembro de ouvir dizer ao meu pai que havia participado nesses serões de leitura foi a do senhor Pedro e da senhora Preciosa, na Rua Joaquim Gonçalves Ferreira, pegada à fonte com o mesmo nome. Ao senhor Pedro conheci-o sempre como o maioral dos bois da família Menezes.  E foi assim que pela primeira vez ouvi falar de “O Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco; de “A Rosa do Adro”, de Manuel Faria Rodrigues; de “As Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Dinis; de “Camilo Alcoforado”, de Campos Monteiro; de “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas (pai); de “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas (filho), uma parte dos quais, se não todos, também lemos em casa, á lareira, nos serões de inverno.

O meu pai gostava, pois, de ler, como se vê. E isso o levou até a formar uma pequenina biblioteca, que cabia numa simples prateleira que ele mandou fazer e colocou numa parede da cozinha, com os livros que estavam ao alcance da sua bolsa: as histórias infanto-juvenis que se vendiam nas feiras e os versos que, além de se encontrarem também nas feiras, eram igualmente vendidos de terra em terra por cegos e seus acompanhantes, normalmente um tocando acordeão e o outro cantando as letras dos referidos versos. Das histórias infanto-juvenis lembro-me de “O Menino da Mata e Seu Cão Piloto”, cuja personagem principal se chamava Guilherme, um meu homónimo, por conseguinte, o que me fazia, naturalmente, ter-lhe uma especial afeição, “O João Ratão”, “Pedro Cem”, “Branca de Neve e os Sete Anões”. “O Capuchinho Vermelho”, “A Gata Borralheira”, etc..
Gostava de ler... e acho que ao meu pai devo, pelo menos em parte, o ter-se-me esse gosto pegado, também.


E ambos o devemos, por outro lado, ao Júlio da Silva Freire. Se este não tivesse tido a benemérita disposição de ensinar camponeses a ler, e não tivesse ele próprio o gosto da leitura e o dom de o transmitir àqueles com quem convivia, eu não teria por certo, hoje, tanto que contar. E que ele tinha o dom de transmitir esse gosto aos que lhe eram mais próximos demonstra-o, sem dúvida, o gosto que pela leitura era manifesto nos seus filhos, o Júlio da Conceição Freire e a Maria Generosa da Conceição Freire, e nos seus netos, com um dos quais, o filho mais novo da Maria Generosa, Júlio da Conceição Silva, tive uma relação muito próxima, acho que fortalecida precisamente devido às nossas afinidades culturais. Quando ambos trabalhávamos (e morávamos) em Lisboa, eu como guarda da PSP e ele como barbeiro, visitávamo-mos de vez em quando um ao outro e fazíamos passeios juntos, normalmente acompanhados das mulheres e dos filhos. Lembro-me de termos ido uma vez, pelo menos, à praia (fui eu até que consegui pô-lo a nadar) e de termos visitado juntos o Museu Etnográfico Leite de Vasconcelos, no Mosteiro dos Jerónimos. Depois de eu ter partido para Moçambique, a cujo embarque ele esteve presente, a nossa relação manteve-se através de correspondência durante alguns anos.


À minha partida para Moçambique, no Cais da Rocha, em 10/10/1959. António Afonso, Elvira Moreira Silveira, José António, Violante Cruz, Preciosa Narciso da Guia, Júlio da Conceição Silva, Guilherme Afonso, Ant. Afonso Cruz dos Santos


Torno ao meu pai, para evocar a sua faceta de ensaiador de ranchos folclóricos, a que já me referi lá para trás, ao falar do celeiro onde o vi ensaiar o primeiro e em que já tinha como adjunto o Francisco de Sousa, mais conhecido por Francisco Mação, que sempre fez parelha com o meu pai em todos os ranchos por ele ensaiados. Além do Mação, só me lembro que também fazia parte desse primeiro rancho, como tocador de ferrinhos, o António Cordoeiro, que sofria de ataques epilépticos e que viria a falecer devido a um acidente de trabalho, salvo erro ao cair de um andaime quando andava a dar serventia a pedreiros. Não sei se eu já então estava em Moçambique, ou ainda em Portugal, não conhecendo pormenores do acidente. Não será contudo despropositado, penso eu, relacionar tal acidente com a ocorrência de um dos seus ataques de epilepsia, doença que deveria tornar impeditiva a execução de certos trabalhos a quem dela sofre.

Mas a pobreza a muito obriga, sobretudo quando há filhos a que dar de comer e vestir, que era o caso, nessa altura, do António Cordoeiro, pessoa por quem me ficou uma grande simpatia desde o tempo dos ensaios no celeiro, era eu miúdo. Uma simpatia que, se tal é concebível, foi ainda sempre crescendo no nosso relacionamento posterior, inclusivamente como companheiros de trabalho que algumas vezes fomos, e que eu pretendi exprimir no conto “O Zé Hóstia”, nele inspirado e o primeiro do meu livro “Circuito”. Que fique claro, porém, que o Zé Hóstia não é o António Cordoeiro. Trata-se somente da personalidade em que me inspirei para criar o Zé Hóstia, pretendendo com isso, sobretudo, prestar-lhe a minha homenagem. Veja-se, a propósito, a NOTA DO AUTOR em “Circuito”, publicado na íntegra em «www.omeucircuito.blogspot.com».


Ainda sobre os ranchos folclóricos, creio que já o primeiro que o meu pai ensaiou foi a chamada dança da roca, como nos outros dois que eu sei ele ter ensaiado e cujo instrumento – a roca - se pode ver na fotografia abaixo, à frente do grupo.


Este rancho, apresentado completo na fotografia seguinte e em que ao centro da primeira fila (de cócoras) estão, por esta ordem, o meu pai, o António Rufino (acordeonista), o Francisco Mação, o José Bacalhau e o Manuel Rato, exibiu-se em 1955.









Entre os dois ranchos referidos, ensaiou (na Casa do Povo, onde assisti a alguns ensaios) um outro, teria eu 16 ou 17 anos, o que quer dizer que terá sido lá para 1946, mais ano menos ano. Relacionado com este gosto do meu pai por danças e contradanças (ele tinha, aliás, fama de bom dançarino), também o vi uma vez, ao ser solicitado para o efeito, a orientar, à hora de uma das refeições (o almoço ou o jantar) uma dança num rancho que andava na colheita da azeitona. Quando o trabalho não era pesado e os dias eram pequenos, acontecia uma vez por outra o pessoal aproveitar para dar uns passos de dança à hora da refeição. Dessa vez, como o olival dava para a estrada da estação e a refeição foi passada à borda da estrada, foi aí mesmo que se fez a dança.


E doutra vez foi mesmo na casa-de-fora da minha casa (a primeira, aquela em que eu nasci) que se realizou, à noite, o baile duma qualquer adiafa, para o que, a fim de arranjar espaço, foi preciso chegar os poucos móveis para os cantos e pô-los em cima uns dos outros. Coisa, seja-me permitido dizê-lo de passagem, que não era lá muito do agrado da minha mãe. Nem isso, nem a dedicação do meu pai aos ensaios dos ranchos folclóricos (nunca o acompanhava). Assim como não era do seu agrado, veja-se só, os cuidados que ele tinha com as flores do seu jardim. Pelo menos foi a ideia que me ficou. Não sei é se essa ideia já existia quando um dia a surpreendi a desarreigar uma roseira que o meu pai tinha plantado encostada a uma parede, no quintal da casa da Rua de Baixo, se nasceu nesse dia. Por ciúmes?... Só podia ser. Mas não deixava de colher flores para meter nas duas ou três pequenas jarras que havia em casa...